terça-feira, 17 de novembro de 2015

O MAL NO MUNDO

O tema do mal sempre foi espinhoso para a teologia, pois nele também estava em jogo a imagem de um Deus bondoso. Se Deus é tão bom, se tudo o que Ele fez é bom, como pode permitir o mal no mundo?
Alguns intelectuais e artistas serviram-se desta percepção para justificar o seu ceticismo e o seu ateísmo, eles afirmaram e afirmam ainda hoje que são incapazes de acreditar num Deus que permite a morte dos inocentes.
Por outro lado, aqueles que defendem Deus, afirmaram que as questões referentes à morte dos inocentes, às injustiças, são um escândalo justamente porque existe um Deus, se Ele não existisse essas questões seriam irrelevantes. Por que é que iriamos nos preocupar, uma vez que não existe Deus? Nos preocupam justamente porque Deus existe.
As duas posições são extremistas. A primeira assegura não acreditar em Deus por que existe o mal e o segundo pretende defender Deus colocando-o mais uma vez no limite, como um “tapa-buraco”.
Para nós que somos cristãos, a resposta equilibrada e honesta a devemos procurar em Jesus Cristo.

O que vemos nas atitudes de Jesus, conforme testemunho dos evangelhos, é que Jesus encarou e enfrentou o mal desde o início da sua missão. Ele foi ao deserto e ficou quarenta dias onde teve o embate contra o mal e de onde saiu vitorioso. Mateus e Lucas falam que o mal se apresentou em forma de Diabo e Marcos fala de Satanás (Cf Mt 4, 1-11; Mc 1, 12-13; Lc 4, 1-13). O que no fundo expressa muito bem a mensagem evangélica, isto é, Jesus enfrentou-se aos poderes do mal no mundo e saiu vitorioso. As imagens do Diabo e de Satanás ajudaram a visualizar essa força real que existe no mundo e que deve ser tomada com seriedade.
Jesus tomou o mal no mundo com seriedade. Venceu o mal, mas a sua vitória não aconteceu ali nesse período de quarenta dias no deserto, mas durante toda a sua vida. (Porque se tivesse vencido o mal apenas naquele momento no deserto não teria sido torturado e morto numa cruz). O que devemos compreender aqui é que Jesus venceu o mal ao longo da sua vida.
A experiência de Jesus com o mal foi concreta, não devemos imaginar que foi uma luta com foices contra o Diabo ou contra Satanás. A luta foi contra homens, pessoas que entregaram a vida ao projeto da morte. (Tudo aquilo que produz dor, injustiça e morte faz parte do projeto do mal).
Jesus fez a experiência concreta da dor física, psíquica e social. Foi torturado, crucificado, humilhado, traído, soube que iria morrer, se sentiu abandonado pelos seus amigos e até mesmo por Deus, seu Pai (Cf. Mc 14, 32-42). Sentiu tristeza, angústia, chorou sangue. Foi implacável contra o Templo, contra aqueles que colocavam mais pesos nas costas das pessoas, defendeu os mais pobres mostrando a sua solidariedade com os injustiçados.  Jesus fez a experiência do mal. E não ficou passivo. Libertou endemoninhados, curou doentes, alimentou famintos, multiplicou pães, consolou pessoas. Na cruz, mesmo confuso, gritou: (Mc 15, 34: “Eloi, Eloi, lemá sabachtáni” “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”). O pai não respondeu naquele momento. A sua resposta foi a Ressurreição.
Afirmar hoje que o mal no mundo seja o Capeta, o Demónio ou Satanás é dar ouvidos aqueles que desejam negociar (e lucrar) com essas figuras que se tornaram “figuras debilitadas” do mal (debilitadas, pois até certos “pastores” são capazes de expulsá-los). Devemos evitar essas figuras que facilmente servem como justificativas do mal no mundo (é sempre mais fácil culpar os outros, melhor ainda se podemos culpar uma entidade capaz de nos forçara realizar o que não devemos. De modo que tira a nossa responsabilidade). Devemos deixar-nos guiar por Jesus, dar a importância na medida certa ao mal, enfrentá-lo com coragem, sem esquecer que ele foi vencido por Jesus, o que significa que o mal é vencível, que podemos sim enfrentá-lo e vencê-lo.

O mal é real mostra a sua cara na dor que produz. Também nas atrocidades cometidas nas guerras como na Síria, onde mais de 300 mil pessoas morreram, ou nos atos covardes de terrorismo. Mas o mal que mata todos os dias em nossas comunidades passa pelos poderes, pelas mãos dos senhores engravatados, que condenam com as suas corrupções milhares de pessoas à pobreza. O mal passa pela sedução de poder, de lucro, que não respeita a vida, menos ainda a natureza. (Para lucrar mais descuidam a manutenção de barragens que estouram cobrindo povoados, matando pessoas e rios, condenando milhares de pessoas ao sofrimento).
O mal existe, claro que existe, mas não o vamos encontrar voando por aí, nem “possuindo” corpos para atormentá-los; o mal é muito mais sutil, ele quer seduzir, deseja que lhe ofertemos a nossa vida, que dediquemos a nossa vida a ele. Muitos se deixaram seduzir: mentem, enganam, corrompem, lucram com a desgraça dos outros, destroem, matam, se alimentam da pobreza, se vestem de lobo, mas tiram o sangue dos pobres. O mal é real, mas não o devemos buscar nas igrejas, nem nos centros de exorcismos, nos terreiros ou nas camas das pessoas. Antes o devemos procurar em nós, em nosso coração.
A boa nova é que o mal é vencível, pois Jesus o venceu, ele o enfrentou com Amor, com fé e com esperança. Eis o caminho para enfrentá-lo. A resposta para o mal é o Amor (Jesus amou as pessoas até o fim: amou os pobres, as crianças, os marginalizados, não fez distinção, entrou nas casas de todos, de pobres e ricos, não as amou porque eram boas, as amou porque quase todas estas pessoas eram vítimas do mal no mundo, as amou porque eram empobrecidas a consequência do mal (até os ricos são empobrecidos e vítimas do desejo de lucro que cega e não permite ver os outros como pessoas, menos como irmãos).
Jesus gritou desde a cruz, mas não deixou de ter fé em seu Pai. “Que se faça a tua vontade”, disse ele após pedir, suplicando ao Pai se poderia “apartar o cálice da dor”. Para enfrentarmos o mal no mundo precisamos ter fé (o ceticismo ou o ateísmo, embora mereçam respeito, não constroem esperança, mas desolação e depressão em pessoas que não conseguem ver sequer uma luzinha no final do túnel). A fé ajuda a olhar o mundo ferido pelo mal com otimismo. Podemos lutar juntos contra o mal e podemos vencer e tornar este mundo menos doloroso. O compromisso sério com a política é um dos caminhos, existem muitos outros.

A esperança e a imaginação são fundamentais na luta contra o mal. Jesus fez a experiência do mal, mas a sua vida foi cheia de beleza, de encontros, de amizade, isto é, a vida não pode ser entregue apenas à tristeza, melancolia, pois uma atitude pessimista não ajuda em nada. Jesus tinha esperança, alegria de viver, gostava de poesia certamente, os seus ensinamentos estão cheios de poesia, falava de crianças, de flores, de pássaros. Gostava de partilhar com os amigos, os visitava, ia em festas, jantas, (até mesmo foi acusado de ser beberrão e comilão: “Veio este Homem que come e bebe, e dizem: vede que comilão e beberrão, amigo de coletores e pecadores” (Mt 11, 19).
A nossa atitude como cristão deve ser essa, de esperança e de imaginação (sonhar e acreditar que as relações entre as pessoas podem ser diferentes). Devemos ter consciência do mal no mundo (não devemos aceitá-lo jamais como algo natural), mas sem esquecer a esperança, o otimismo e o bom humor. A alegria é um antídoto contra o pessimismo, o que de modo algum é um convite à indiferença.  

*Imagens da internet.

terça-feira, 30 de junho de 2015

UMA METÁFORA



Religião e arte são duas irmãs que ora estão bem ora estão brigadas. As duas são linguagens e não têm nenhuma utilidade em si mesmas a partir de um olhar económico. A sua grandeza reside na linguagem. (Aqueles que as comercializam são meramente comerciantes).

Pessoas do nosso tempo se deixam seduzir facilmente pelos números. Algo se torna notícia quando entra em jogo números. Quanto custa um quadro de Van Gogh? Alguns chegaram a pagar mais de 140 milhões de dólares por uma tela. Até mesmo o pintor, se estivesse vivo, ficaria escandalizado e perceberia que alguma coisa está errada com o mercado. O pintor que viveu e morreu miseravelmente, com certeza não precisaria dos milhões, mas apenas o necessário para exercer a sua arte com dignidade.

A arte é uma realidade e o mercado é outra.

A religião por lidar com o espírito humano, assim como a arte, é um caminho que pretende elevar o nosso espírito a um patamar superior onde a liberdade do ser é a única meta. A religião não tem utilidade prática, mas ela é uma linguagem capaz de humanizar e libertar. A arte como linguagem faz o mesmo. Diante da beleza o espírito humano se liberta, torna-se mais leve e pode voar.

Quando a religião se torna moeda de troca, quando Deus é apresentado como um vil comerciante, a religião perde a sua beleza e volta a ser apenas expressão da nossa mesquinharia.

Comercializar o sagrado enganando as pessoas é aviltante. Por isso precisamos insistir e não esquecer que as expressões essenciais da nossa relação com Deus não podem ser compradas ou vendidas. O perdão, a misericórdia, o amor, a graça, a bênção, a salvação, são sinais dessa relação e são completamente gratuitas. Quem comercializar com estas realidades está mentindo.

Quem ouvir atentamente uma bela melodia como o de Bach (por exemplo, Cello Suites, se nunca ouviu procure ouvir) não pode deixar de sentir o seu espírito se mexer de alegria. Porque a arte tem essa peculiaridade de elevar o espírito humano.

Então aconteceu um fato que faz parte da limitação humana, a música termina, o olhar extasiado diante de um quadro se desvia, uma obra de teatro acaba, um ritual religioso conclui. Ninguém passa olhando um quadro o dia inteiro, pois perderia o seu encanto. Ninguém passa rezando durante o dia inteiro, ninguém aguentaria.

A arte como a religião são apenas linguagens. São admiráveis em si mesmas por aquilo que são capazes de produzir em nosso espírito. A arte comercial serve para ganhar dinheiro. Uma religião deturpada vende desde a bênção até mesmo uma suposta salvação.

A religião se for autêntica oferece oportunidades, mostra o caminho, acompanha, acolhe e principalmente humaniza. Anuncia o amor gratuito de Deus que é Pai e por amar tanto os seus filhos, enviou o Seu ao mundo não para morrer numa cruz, mas para anunciar o amor incondicional que Deus tem por nós (infelizmente o anúncio comprometido com a verdade o levou, primeiro à tortura e depois à morte).

Quando uma religião está mais preocupada em falar de pecado, do diabo e de condenações, ao invés de anunciar a Boa Nova do Amor do nosso Pai, com certeza é uma religião preocupada muito mais consigo mesma do que com o anúncio.

Assim como a arte, a religião é uma linguagem que deveria nos tornar seres humanos melhores. Deveria proporcionar caminhos de encontro com Deus e nos libertar. Fazer parte de uma tradição religiosa é muito belo e ser livre dentro dela é ainda melhor.

Compreender que Deus é Pai e que em primeiro lugar nos ama é uma lição que devemos aprender dentro de uma tradição, se ela não nos fala disso devemos, no mínimo, desconfiar. Assim como é lícito desconfiar da arte que tem como finalidade apenas lucrar.
......
Imagens: "A noite estrelada" (Van Gogh); Procissão com velas. Fonte: Internet.

quarta-feira, 27 de maio de 2015

ESPIRITUALIDADE NÃO É UMA FERRAMENTA

A espiritualidade não é uma ferramenta religiosa, ela é uma dimensão do que somos. Sou um ser espiritual. (Muitos acreditam que a razão seja como uma máquina dentro da nossa cabeça ou que a fé seja como um crivo material por onde passam tudo o que se refere a Deus. Tanto a razão como a fé não são máquinas, elas fazem parte da nossa dimensão espiritual).
Na vida existem muitos modos de viver a dimensão espiritual. Alguns a vivem a partir da fé em Deus e outros sem uma fé religiosa. Viver a espiritualidade a partir da fé não significa deixar de alimentar o espírito com todas as dádivas que Deus nos concedeu. A beleza da natureza é a primeira grande fonte da espiritualidade. A contemplação da natureza e de tudo o que é belo nos ajuda a entrar em sintonia com o nosso “eu” mais profundo (O “eu” mais profundo não significa que existiam vários “eus”, mas apenas que o “eu” de todos os dias pode estar apenas na superficialidade da vida. Viver somente na superfície significa não se aprofundar nas coisas importantes da vida. Preferimos ficar na mera distração e sabemos hoje que os meios de comunicação, televisão, cinema, internet, músicas, livros, procuram nos entreter. Trata-se da famosa cultura do entretenimento. O que naturalmente na dose certa é inofensiva).
O perigo reside justamente na overdose da cultura do entretenimento, da cultura da distração, quando ela pretende ocupar todos os lugares da nossa vida espiritual, de modo que não oferece mais espaço para o encontro pessoal, para o encontro consigo mesmo (é como se ninguém mais tivesse tempo de se olhar no espelho para ver todas as suas qualidades e os seus defeitos). A overdose da cultura da distração pode atrofiar as capacidades espirituais humanas como o encontro gratuito com o outro, encontro que não obedece a nenhuma pretensão utilitarista, a profundidade do pensamento (somente dizemos que achamos –“eu acho”- sem refletirmos bem sobre as coisas), podemos perder a nossa capacidade de sonhar ao confundir completamente a vida com a distração (não me importo com o que acontece com o meu país, não vou fazer nada pela sociedade, nos isolamos porque perdemos a capacidade de uma visão crítica da realidade.
Quero dizer com isto que alimentar uma espiritualidade sadia exige esforço. Para nós que somos cristãos a espiritualidade é fundamental, pois além de vivermos a partir da fé em Jesus, procuramos não descuidar toda a criação de Deus assim como a criação humana como fontes da beleza. Porque assim como o amor somente pode vir de Deus, também a beleza que nos transporta da nossa realidade vem de Deus.
Desse modo, para um cristão, é fundamental a atitude de contemplação diante da natureza que consideramos obra de Deus, como um instante de encontro pessoal, como um momento de profundidade, de silêncio reflexivo, de introspecção, de diálogo íntimo, de sonhos, de imaginação, de desejo de melhorar a própria vida e a dos outros. Assim, a contemplação se converte num diálogo com Deus, que é o nome que damos à oração. O nascer do sol, o pôr do sol, o arco-íris, as nuvens, a chuva, as árvores, as plantas, as flores, as montanhas, o chão, a água, o rio, o mar, todos os animais etc., são convites constantes à contemplação espiritual.
Outro modo de viver a espiritualidade é deliciar-se diante das obras humanas, toda forma de beleza produzida pela humanidade. Ficar uns minutos diante de uma obra de arte, uma pintura, uma escultura, ler um poema e silenciar, ouvir uma boa música com os olhos fechados, ler um bom livro e deixar-se questionar pelas questões humanas fundamentais. Compartilhar um bolo maravilhoso preparado por umas mãos generosas, uma conversa gratuita com um amigo, uma piada boa e o sorriso, tudo pode ser momento altíssimo de espiritualidade. Perceba que estou querendo dizer que a espiritualidade passa pela vida, que muitas vezes a cultura do entretenimento e da distração dificulta a vivência desses momentos fundamentais.
Nós cristão fomos educados a desconfiar da “alegria excessiva”, da felicidade, do prazer, como se a vida tivesse que ser eternamente um “vale de lágrimas” e por isso meio que ficamos encabulados diante dos prazeres da vida. Nunca estamos totalmente à vontade diante do prazer, quase sempre devemos nos policiar como se nos perguntássemos o tempo todo se não estamos fazendo alguma coisa errada. Com certeza você se assustaria se depois de uma confissão o padre dissesse que no lugar das três Ave-Marias e três Pai-nossos, como penitência, você fosse tomar um copo de chope bem gelado. (O que será que você pensaria? Com certeza levaria um susto, pois o prazer de um cafezinho, de uma cerveja, de um copo de vinho, de um sorvete, parece que pertence a outro âmbito onde Deus quase nunca está presente).
A espiritualidade não é exclusividade do âmbito religioso, porque ela faz parte essencial da vida de cada um de nós.

*Imagens: Internet

quinta-feira, 5 de março de 2015

A PROPÓSITO DA ESPIRITUALIDADE

Você tem uma espiritualidade? É claro que tenho, sou um ser humano!
Cada ser humano tem um modo de viver a sua espiritualidade, que nem sempre tem a ver com experiências religiosas. Acontece que nós associamos imediatamente o espiritual com o religioso, embora muitas pessoas vivam a sua espiritualidade sem acreditar em Deus.
Quem vive a sua espiritualidade dentro de uma determinada experiência religiosa como o cristianismo, com frequência comete um erro muito comum que consiste em acreditar que a espiritualidade seja algo exclusivamente religioso. Dito de outro modo, muitas vezes acreditamos que a espiritualidade seja como um instrumento (um aparelho) religioso que precisa ser carregado como se fosse uma bateria. Essa ideia é perigosa, pois pode nos levar a acreditar que a dimensão mais importante do ser humano seja a espiritual em detrimento da corporal.
Na verdade o ser humano é um todo, quando vivemos a nossa corporeidade vivemos a nossa humanidade e quando vivemos a espiritualidade vivemos a nossa humanidade, ou seja, não pode haver uma divisão como se fossem duas caixinhas.
A nossa confusão ainda é maior quando essa separação é extrema e afirmamos que a espiritualidade é a única parte boa da vida. Essa divisão (compartimentação) nos levar a perceber a vida em pequenas caixas. Umas caixas são boas e outras mais ou menos. As caixas espirituais são boas, as caixas da corporeidade mais ou menos. Rezar é bom, mas ir à balada nem tanto. Rezar é de Deus, mas um copo de vinho ou uma lata de cerveja pode ser do diabo. São confusões que as pessoas fazem ao separar essas duas realidades humanas.
Não existe ou não deveria existir tal separação. Espiritualidade e corporeidade formam uma única realidade, mas nós gostamos de separar tais realidades. Exemplo: agora vou à missa, é o tempo da espiritualidade, depois vou ao churrasco de um amigo que será o tempo da corporeidade. Eis o equívoco: tanto a missa quanto churrasco fazem parte da realidade humana e não deveria haver tal divisão.
Viver a espiritualidade como um cristão consiste naturalmente em alimentar-se da Palavra de Deus diariamente, participar da comunidade, ter algumas atividades pastorais, mas também inclui principalmente a vivência familiar, a mesa partilhada, as conversas, as risadas, o jornal na televisão, a novela, assim como o momento do trabalho, do estudo, do lazer etc.
Ninguém deveria dizer, “agora vou viver a minha espiritualidade”, porque a vida é uma só e devemos tentar viver de tal modo que não tenhamos vergonha de dizer ao Deus da nossa vida: “Neste momento Tu estás aqui”.  
(Têm muitos cristãos que preferem fazer a divisão entre a espiritualidade e a corporeidade porque desse modo podem dizer: “agora é o momento de Deus e depois posso fazer o que quero”, porque o resto do dia já não será “tempo de Deus”). Quantos cristãos que participam dos cultos, das missas, são “perfeitos” quando estão na igreja, mas depois não duvidam em enganar, mentir, roubar às pessoas. A nossa política está cheia de exemplos de “cristãos fervorosos”, que se revelam “verdadeiros malandros” na hora de administrar o que deveria ser administrado com honestidade uma vez que se trata do bem comum.
Para muitos a divisão entre espiritualidade e corporeidade convêm para justificar as suas incoerências.
Uma religiosidade saudável não pode alimentar o dualismo, as duas caixas, uma vez que o ser humano é uno. Se o meu corpo está doente eu estou doente, se o meu espírito está doente eu estou doente, aliás é um equívoco dizer “meu corpo”  e “meu espírito”, porque sou corpo e espírito ao mesmo tempo, sou uno.
A esquizofrenia consiste justamente na ideia da dualidade entre bem e mal, puro e impuro, condenação e salvação, corpo e espírito. A realidade humana engloba tudo isso, de modo que quem afirmar que é totalmente puro ou totalmente santo é um mentiroso, assim como não existe nem um ser humano que seja um caso perdido.
O segredo para uma vivência religiosa saudável reside na aceitação deste princípio básico: a vida é rica demais para ser apenas corpo ou para ser apenas espírito. A vida é muito mais do que tudo isso. Quem é cristão que procure ser um bom cristão integralmente, que procure ser humano de verdade, porque podemos negar tudo, até mesmo podemos negar que Deus existe, mas o que não podemos negar é que devemos procurar viver com dignidade a nossa humanidade.

*Fonte das imagens: internet.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

O SORRISO DE DEUS


Entre as tantas qualidades que nos diferenciam dos animais está a nossa capacidade de sorrir. Nenhum animal consegue sorrir, embora alguns deles gostem de brincar, mas não conseguem sorrir. O sorriso é uma exclusividade humana, é uma expressão da interioridade, do estado espiritual. O riso autêntico, aquele espontâneo, expressa o estado emocional, a alegria, o contentamento, a felicidade. O riso mostra o lado gracioso do coração humano.

Na Teologia Medieval havia, entre outras discussões, que hoje nos parecem anacrônicas, a pergunta sobre se Deus poderia ou não sorrir. E a resposta que prevaleceu por séculos afirmava que era impossível que Deus sorrisse.

O escritor italiano Umberto Eco no seu livro “O nome da Rosa”, que depois virou filme, coloca como centro temático a questão do riso. Num tradicional mosteiro, misteriosamente começam a morrer alguns monges cuja causa deve ser revelada por um enviado para investigar o caso. A resposta para o enigma está no centro da biblioteca do mosteiro, num livro grosso, cujas folhas foram envenenadas.

A resposta surpreendente está justamente nesse livro. Por que alguém iria envenenar as páginas de um livro? O que tinha esse livro de especial? O livro era de piadas, que os monges descobriram e iam escondidos de noite para lê-lo e “matar-se” de dar risadas.

A ideia do livro de Umberto Eco expressa brilhantemente como era a compreensão que se tinha de Deus. (Com certeza Alguém muito sério que desconfiava de todos aqueles que sorriam na calada da noite conventual). Um Deus sério, um Deus incapaz de sorrir, que não gosta de gente que ri à toa. (Hoje sabemos que gente que se leva muito à sério deve sofrer algum tipo de problema de autoestima).

Desde criança aprendemos que a Igreja é um lugar muito sério, porque “Deus é muito sério”, parece que Ele não gosta muito de crianças, de risadas, de pessoas falando. Na igreja todo o mundo deve ficar quieto, com a cabeça baixa, e nem pensar em sorrir. Isto é um equivoco que provêm da ideia de que Deus somente pode morar na perfeição das coisas estáticas, nas coisas que não se movem, nas coisas perfeitas. Seriedade + perfeição = Deus.

Graças ao mesmo Deus, com a ajuda da própria teologia e de outras ciências fomos valorizando tudo o que tem a ver com a nossa vida. Deus é vida, Deus é alegria, Deus é sorriso, por isso a igreja deve ser o lugar da vida, da alegria e do sorriso.

A igreja não é um teatro onde cada ator deve representar o seu papel, e o público que chega, senta no seu lugar e assiste em silêncio respeitoso (sem ligar o celular) ao espetáculo. A igreja não é um teatro, ela é o lugar da vida, é a casa da nossa vida.

Por isso a igreja não pode ser um mercado onde todo mundo fala, grita e ninguém se entende, a igreja não pode ser o lugar de um show, onde os cantores imitam os astros da televisão. A igreja é lugar da vida, mas daquela vida familiar, tranquila, com espaço para o encontro com os irmãos, de diálogo, lugar para o sorriso, para o silêncio, para o respeito, para a reflexão e especialmente para o diálogo íntimo com Deus.

Tudo o que é exagerado atrapalha. Seriedade demais deve espantar até mesmo a Deus. Mas bagunça demais também não ajuda em nada. Na igreja, assim como numa casa, o equilíbrio é fundamental. Uma casa séria demais deve ser muito chata, mas uma casa onde somente tem música a todo volume deve ser horrível.

Mas será que Deus gosta mesmo de sorrir? Naturalmente estamos lidando com uma imagem humana, nós sorrimos, nós gostamos de sorrir, até mesmo contamos piadas com a única finalidade do riso. Não sabemos se Deus sorri como a gente, e não creio que tenha importância a questão. Agora, o que é fundamental é reconhecer que Deus expressa muito bem o que sentimos quando sorrimos.

Quem é mãe ou pai sabe o significado de um sorriso transparente. O pai e a mãe experimentam uma alegria única quando carregam os seus filhos em seus braços e não é preciso prestar muita atenção para perceber como o coração deles transborda de alegria. Os seus lábios não se cansam de mostrar esse contentamento.

O sorriso de Deus expressa-se nessa imagem do menino que veio ao mundo. O sorriso de Deus é a alegria de uma criança que nasceu entre nós. “Envio o meu Filho ao mundo porque amo cada um de vocês, meus filhos, porque amo o mundo, porque Eu sou o Amor, porque Eu sou a alegria, porque eu sou a beleza da gratuidade”. Com outras palavras, São João, testemunha esta verdade.

A imagem de Deus que tenho é a de um Pai que tem nos braços o seu Filho, em cujo rosto resplandece o amor da gratuidade.

O sorriso de Deus é o Natal. É a Boa Notícia de que somos amados por Ele: “Deus amou tanto o mundo que enviou o seu próprio Filho”. O Natal, desse modo, é sempre um lembrete do Amor divino. Só que é um Amor oferecido que precisa ser aceito para que produza os frutos concretos, que devem ser mais Amor e mais gratuidade.

É muito fácil, porém, dizer que Deus nos ama ou que amamos a Deus, isto pode não passar de uma ideia que repetimos sem tomarmos consciência da sua importância e das suas consequências. Terá algum valor ser amado por Deus se eu sou incapaz de amar o meu próximo? Terá algum valor afirmar que Amo a Deus quando sou intratável e mal educado com o meu próximo?

O sorriso de Deus que é o Natal deve ser uma festa assumida na vida, que deve tornar a nossa vida mais alegre e gratuita. O amor deve nos tornar mais humanos, mais fraternos, menos arrogantes e mais sábios. (O Natal é um caminho que deve ser percorrido diariamente, não é mesmo?).

Com esta última postagem deste ano, desejo a você e a sua família, Feliz Natal, que a Graça do Sorriso Luminoso de Deus (que é o seu Filho entre nós) ilumine e contagie de alegria e felicidade a nossa vida. 

Boas Festas e realizações para 2015!

*Imagens: Internet.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

SER LIVRE DIANTE DE DEUS


As religiões nem sempre foram caminhos de autonomia para o ser humano. Infelizmente foram muito mais caminho de heteronomia e de violência. (Autonomia significa algo que se move por si mesmo, que anda com as suas próprias pernas. Heteronomia significa que para andar precisa ser empurrado, alguém tem que empurrar). E você como cristão é autônomo ou heterônomo?

Os críticos das religiões têm razão na hora de criticar que na história da humanidade as religiões serviram muito mais como opressão, de violência e de heteronomia do que realização do bem e da justiça.

As três religiões monoteístas: Judaísmo, Cristianismo e o Islamismo têm nas suas histórias momentos cruéis, nenhuma delas é limpa e imaculada; ao contrário, infelizmente cada uma delas têm manchas terríveis na sua história. Os judeus foram cruéis em nome de Javé ao invadir a terra que era de outros povos. Os cristãos foram cruéis em nome de Cristo ao conquistar povos e justificar até mesmo a escravidão. O islamismo continua sendo utilizado de modo extremista até hoje. São apenas exemplos de que nenhuma dessas três religiões monoteístas encontra-se limpa. Não se trata tampouco de dizer qual delas cometeu maior mal no mundo (aqui entre nós, creio que os bancos e os governos corruptos fizeram muito mais mal no mundo do que essas três religiões juntas).

Não vou fazer aqui uma crítica gratuita às religiões, a única intenção aqui é a formação, pois o saber, o conhecer, pode nos ajudar no momento de amarmos mais.

O que devemos nos perguntar é se as religiões são mesmo caminho de maldade em si mesma ou não. A resposta deve ser não, pois como é que podemos seguir uma religião sabendo que ela faz mal às pessoas? Vamos procurar fundamentar a nossa resposta.

A religião para ser autêntica deve ser caminho de liberdade, deve ser caminho de autonomia e não de opressão ou de heteronomia. Ninguém gosta de ser empurrado ou levado aos lugares que não quer ir. Todos desejamos a liberdade para decidir o que será melhor para nós.

Acontece que todas as religiões são humanas como expressão. Nenhuma dessas três religiões caíram prontas do céu. A organização delas é totalmente humana. Todas as religiões como linguagem são humanas. Quando entramos no âmbito da fé, falamos que a nossa religião nasceu de uma inspiração divina. Assim afirmam os judeus, nós, cristãos, e também os muçulmanos.

Ficando na nossa religião, nós afirmamos que Jesus Cristo é o Filho de Deus, esta é a base divina da nossa religião. O que precisa de um ato de fé, ou seja, existem pessoas que não vão aceitar isto e dirão que Jesus não passava de um homem, que era apenas um homem qualquer. Mas para nós, que temos fé, Ele é o Filho de Deus, o Deus encarnado, Aquele que venceu a morte e continua vivo no meio de nós. Repito, esta verdade pertence ao mundo da fé, ao mundo do “eu creio” e do “nós cremos”.

Nós fundamentamos a nossa fé na experiência dos primeiros cristãos, portanto, na fé de homens e mulheres que conheceram Jesus, que viveram com Ele e que foram testemunhas privilegiadas. Essas primeiras experiências com o Senhor foram escritas e estão contidas no livro que conhecemos como Novo Testamento. Esse livro para nós é um livro sagrado, pois guarda as experiências sagradas dessas pessoas. (Entendamos aqui sagrado não como algo que está fora de nós, mas algo que é muito caro para a gente, que amamos demais, que é muito importante para nós. Alguns afirmam que a mãe é sagrada, que a família é sagrada, que a esposa é sagrada, que a namorada é sagrada, que a cama do casal é sagrada etc).

A fé das pessoas sempre é sagrada, mesmo que a pessoa acredite muito mais num pedaço de gesso do que no amor misericordioso do Pai. Essa fé é sagrada e merece respeito sempre. Pois a fé faz parte do nosso santuário pessoal, daquela intimidade que ninguém mais conhece, somente você e Deus. A fé mora ali, no mesmo lugar onde mora o amor, a amizade, a gratuidade, o bem, o gosto pela beleza, pela justiça, o desejo de ser mais, de ser feliz, de não errar tanto. Esse é o santuário de cada um, ali mora a fé, por isso a fé merece respeito sempre, mesmo que seja uma fé ingênua e simples. O que não significa que não devamos procurar amadurecer a nossa fé. Ninguém deve se contentar com apenas rezar o terço, ou fazer caminhadas nas procissões, fazer promessas, rezar pulando (tudo isto pode ser importante), mas somos convidados a caminhar sempre, a buscar a intimidade, a profundidade na nossa relação com Deus.

Na base da nossa fé está a experiência divina de um Deus que por amor enviou o seu Filho ao mundo. Como organização, a religião é totalmente humana, é histórica, precisa da cultura, dos costumes para se expressar. Assim podemos dizer que a religião nasce sempre como expressão de Amor de Deus, mas na hora de colocarmos isso em prática, quase sempre falhamos, pois a nossa parte é falível.

A religião para ser autêntica deve ser como uma mão estendida ao crente no caminho da liberdade e na saudável relação filial com Deus. Isto é, a religião deve ajudar o crente a caminhar confiante em Deus, a igreja deve ser um lugar privilegiado desta aprendizagem. A comunidade deve ser especialista em ajudar as pessoas a confiar mais em Deus do que em normas. A religião deve ser liberdade e não medo, deve ser confiança em Deus e não ameaças.

Quem é que não gosta de caminhar com os próprios pés? Pois Jesus veio justamente para nos ajudar neste caminho de liberdade pessoal, que somente poderá ser plena como expressão desse amor construído no silêncio do encontro com Ele. É uma beleza ver cristãos livres diante da vida! Livres e responsáveis, que não temem diante dos irmãos e diante do Senhor não como expressão da sua arrogância, mas da sua confiança, que não precisam fingir o que não são, que não estão preocupados demais em agradar todo mundo porque sabem que o seu agir está pautado na palavra de Deus e não apenas em expectativas humanas.

Todas as religiões nasceram boas (o Concílio Vaticano II afirma timidamente que em cada uma delas habita a sementinha do Verbo). Infelizmente a organização dela, a parte humana, deixa muitas vezes a desejar, mas a boa notícia é que estamos caminhando, que estamos aprendendo. Não podemos mais repetir erros do passado. Graças a Deus, com o nosso atual Papa, voltamos devagarinho o nosso olhar à vida real das pessoas. É como se o Papa dissesse para cada cristão que ele não precisa deixar de ser o que é para ser cristão. É com certeza uma confiança inabalável em Deus, é confiar que é Deus quem conduz a nossa história. Ainda bem que Deus age misteriosamente na nossa história que chega a nos surpreender de tanto em tanto.

A religião hoje pode ser caminho de imaturidade, de dependência doentia e até mesmo de violência; mas ela também pode ser uma boa notícia que começa pela sua vida, que perpassa a vida da família, que chega até as nossas comunidades produzindo vida nova.

Sendo assim a religião é um lugar onde nos sentimos bem, porque é um espaço da nossa casa e não um lugar de medo, onde vamos cumprir com as nossas obrigações (Cansei de ouvir “vou a missa para cumprir com a minha obrigação de cristão”. Para um cristão maduro não pode existir obrigações, mas sim responsabilidade e atitudes de gratuidades que mostrem com gestos, palavras e vida o que de verdade acredita).

A liberdade diante de Deus é o primeiro sinal de maturidade religiosa. 


* Fontes das magens: Internet.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

MORTE E RESSURREIÇÃO

Domingo passado celebramos o dia dos finados, um bom dia para refletirmos sobre o seu significado para nós cristãos.

A morte, como uma realidade, deveria ser um fato natural como o próprio nascimento. Atualmente ela deixou de ser um fato familiar, motivo para encontros, momento de espiritualidade e vivência normal do luto. Hoje quase que temos vergonha da morte, sentimos como algo incômodo e por isso ela é escondida; alugam-se lugares especiais para o velório e quanto mais rápido for o enterro melhor. Infelizmente no mundo moderno não temos mais tempo para as coisas humanas importantes.

A morte infelizmente é o fim da vida neste mundo e nós que nos apegamos tanto à vida, que amamos viver, ficamos tristes com ela, por isso a morte jamais é bem-vinda. Lembro que costumava brincar dizendo que “algum dia a gente vai se encontrar no céu, pois temos essa esperança e nesse lugar encontraremos a plenitude, mas quanto mais tarde, melhor”.

Ninguém tem pressa de deixar este mundo. Nenhum cristão em sã consciência pode desejar a morte. É compreensível que num momento de desespero as pessoas se queixem dizendo que seria melhor morrer, mas depois que os percalços passam, a vida recupera toda a sua beleza e cresce o desejo de continuar vivendo.

Nós, cristãos católicos, fazemos uma confusão quando chega o dia dos finados. Repetimos uma frase bem inocente sem pensarmos no seu significado. “Vamos rezar pela alma de fulano”.

O que está na cabeça destas pessoas é que o ser humano se divide em duas partes: o corpo e a alma. Acreditam que quando alguém morre o corpo do falecido se destrói e a alma sai voando por aí. (Esta compreensão pertence à filosofia grega e não ao cristianismo. O filósofo Platão afirmava que o corpo é uma prisão para o ser humano, cuja libertação acontece com a morte).

O cristianismo tem uma visão totalmente diferente, pois ele não tem a sua base na filosofia grega, mas na sabedoria semita (ou seja, a sabedoria do povo do deserto, do povo da Bíblia).

O ser humano para o cristianismo é uma Unidade, não se divide em partes, corpo e alma, mas distingue dimensões que estão unidas, a dimensão corporal e espiritual. O ser humano para o cristianismo é Uno (unidade), não se divide em duas partes, por isso o cristão não pode dizer “tenho corpo ou tenho alma”, é mais coerente dizer “sou corpo, sou um ser espiritual”.

O cristianismo, em nome da missão evangelizadora, utilizou a filosofia grega como linguagem que, naquela época, era como o inglês de hoje (que devemos utilizar se quisermos ser compreendidos). O cristianismo utilizou a filosofia grega como a sua linguagem e as consequências foram desastrosas, pois quando se divide o ser humano em corpo e alma como os gregos, a tendência é menosprezar o corpo e supervalorizar a alma. Desse modo tivemos uma compreensão dualista da realidade humana (alma x corpo; bem x mal; claridade x escuridão; céus x mundo; branco x preto etc.).

De acordo com a compreensão dualista tudo o que pertence ao corpo é mundano, ruim, maldade, escuridão, pecado e condenação e tudo o que pertence à alma é bom, claridade, pertence à santidade e à salvação (por muito tempo para os católicos a santidade consistia em rejeitar as coisas do mundo e tudo relacionado ao corpo e abraçar tudo o que têm a ver com a alma).

Podemos perceber ainda hoje as consequências dessa compreensão na nossa espiritualidade, nas nossas pastorais e na nossa relação com o mundo e com a nossa própria corporeidade. Toda separação radical é terrível, quando vemos que por aqui somente têm capetas e no outro lado somente têm anjos, alguma coisa pode estar errada. (É fácil perceber essa ideia na política cuja disputa ainda está viva na memória. Nas propagandas, para o segundo turno, apresentavam claramente essas ideias. O outro partido é o caminho do mal e o meu partido é a salvação. Neste partido somente têm honestos e no outro, somente corruptos. Lutas terríveis entre “santos e demônios”. Seriamos ingênuos demais se acreditássemos nessas histórias inventadas para enganar os mais simples, pois a nossa experiência nos mostra que essas realidades fazem parte do coração humano e não de um determinado partido político).

A realidade humana é uma Unidade afirma o cristianismo, portanto o ser humano é Uno na Vida e é Uno na Morte. Quando uma pessoa morre, morre mesmo; não sai do seu corpo uma alma que estará pairando por aí. A morte humana é morte mesmo. É mais ou menos como se a porta da vida, neste mundo, tivesse se fechado. Acabou, agora é silêncio absoluto.

A esperança cristã abre esta mesma porta que se fechou para uma confiança plena. Nesta porta nos lançamos na confiança nos braços do nosso Pai que é Criador. A fé cristã afirma que a morte não tem a última palavra, pois Deus Pai não se esquece de nenhum dos seus filhos. Nesta porta que se abre, nós já não temos absolutamente mais nada a fazer (o falecido está nos braços do Pai, agora pertence totalmente à Misericórdia dele).

Deus que é Pai e Criador é o único capaz de restituir a nossa vida, de recriar a nossa existência, somente Ele pode nos fazer viver novamente, agora numa nova realidade que nenhum de nós conhece ou pode conhecer a não ser pela fé na própria ressurreição de Jesus Cristo. É na ressurreição Dele que encontramos luzes para afirmar que Deus Pai não se esquecerá de nós. (Então é importante perceber que não se trata de um conto de fada, pois a nossa fé têm raízes profundas na Páscoa do Nosso Senhor que naturalmente pertence ao mundo da fé). Desse modo, é possível afirmar com “certeza” confiante que em Jesus sabemos quem somos e sabemos o que acontecerá conosco também após a nossa morte. Eis a nossa fé, eis a nossa esperança.

Alguém poderá perguntar por que devemos rezar, então, pelos nossos falecidos e a resposta é simples. Nós não rezamos pelos nossos mortos para convencer Deus a ser bom com eles. Deus não precisa ser convencido para ser misericordioso, Ele Pai e é Criador. A oração pelos nossos falecidos deve ser uma grande Ação de Graças. “Obrigado Senhor pela Vida, pela memória de fulano”. (Veja que é muito melhor dizer “vida ou memória”, do que dizer “pela alma”). “Obrigado por nos ter permitido o privilégio de conviver, de compartilhar o mundo com fulano”... etc.

É muito mais cristão rezar dando graças a Deus do que pretender dizer a Deus o que Ele deve fazer. A oração tem que nos levar à solidariedade com os familiares do falecido, não como um favor que deve ser feito, mas como uma atitude de alguém que têm “com-paixão” e se coloca silenciosamente ao lado destas pessoas como um irmão ou como uma irmã.

A oração deve nos ajudar a tomar consciência da importância e da beleza da vida e que todos estamos à caminho da irmã morte e por isso devemos procurar viver com gratidão, com alegria e muita esperança confiante Naquele que é capaz de Recriar a vida e “fazer novas todas as coisas”.  

* Fonte das imagens: internet.