terça-feira, 26 de agosto de 2014

O SER HUMANO II


Verdades de fé tão importantes não podem ser alicerçadas, fundamentadas sobre linguagens figuradas; as pessoas que têm um senso crítico já não aceitam isso, e elas têm razão, porque a teologia está ali para ajudar a iluminar a fé. A fé que é um dom que vem de Deus, mas ao mesmo tempo é o meu “Sim” que deve ser alimentado, esclarecido, estudado, o que significa que temos o dever de correr atrás para que a nossa fé não seja infantil, para que o nosso “Sim”, não seja um “Sim” ingênuo.

No livro do Génesis encontramos duas narrativas alegóricas sobre a criação (dissemos isso na reflexão anterior). São duas tradições diferentes, de dois grupos distintos que, seguramente ao longo de séculos foram explicando aos seus filhos, o modo como tudo chegou a existir. Devemos imaginar sempre que essas narrativas eram contadas ao redor do fogo, num ritual religioso, através de liturgias diante do Senhor. Quando chegou o momento de ajuntar as narrativas no texto da Bíblia, como conhecemos hoje, foram acrescentados os textos das diversas tradições (exemplo: suponhamos que devemos recuperar a história da nossa comunidade de fé, cada movimento pastoral é convidado a escrever as suas observações sobre a origem da comunidade; com certeza cada grupo terá uma visão diferente sobre a mesma realidade). Foi o que aconteceu com essas duas narrativas da mesma verdade.

De modo que no mesmo livro temos duas narrativas bem diferentes; vejamos apenas o que se refere à criação do ser humano. Na primeira narração que vai do capítulo 1 até o capítulo 2, 4a, percebemos que Deus fez o ser humano à sua imagem e semelhança. “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança... E Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou” (Gn 1, 26-27). Na segunda narrativa que vai do capítulo 2, 4b até 25, notamos que Deus fez primeiro o homem e depois a mulher. “O Senhor Deus modelou o homem da argila do solo, soprou alento de vida em seu nariz, e o homem se transformou em ser vivo. (...) Da costela que tinha tirado do homem, o Senhor Deus formou uma mulher e a apresentou ao homem” (Gn 2, 7. 22). Repito, são duas tradições, dois modos de ver e entender a mesma e única verdade expressada pela Sagrada Escritura. Qual é essa verdade?, a verdade de que Deus é o Senhor da vida.


Aqui é importante fazer um parêntesis: (a compreensão de “verdade” que temos em nossos dias obedece à evidência, ou seja, algo é verdadeiro se consigo “demonstrar”, se esse algo pode “funcionar” e em último caso, se pode “ser útil”. A Sagrada Escritura não tem essa pretensão, o que ela quer é “mostrar” –não demonstrar– o sentido da verdade, o significado importante para a vida humana. A verdade da ciência é prática, a verdade da Bíblia é sentido de vida. Por isso é muito importante realizar a pergunta correta; por exemplo, diante da história de Adão e Eva a ciência, no seu direito, vai perguntar assim: aconteceu mesmo?, foi assim mesmo que aconteceu?, pode ser demonstrado? A Sagrada Escritura, porém, vai fazer a seguinte pergunta: qual é o significado?, qual é o sentido dessa narração?

Quero dizer com isto que a Bíblia não é um livro de ciência, mas “uma história de relação de um povo com o seu Deus, uma história de amor, cheia de contradições, mas cheia de esperança e possibilidade de vida em abundância” – veja que utilizei uma linguagem figurada para definir o que seja a Bíblia. A palavra de Deus encontrou eco na história do povo judaico, ela foi acolhida pelo povo que acolheu Deus Javé como o seu Pai, Libertador e Salvador, Companheiro de caminhada. Essa longa história, que é uma história sagrada, nos é testemunhada na Sagrada Escritura. Outra palavra importante: “testemunho bíblico”).

O testemunho bíblico afirma uma verdade importante: o ser humano foi feito por Deus! A Bíblia não pretende discutir com a ciência, não tem essa finalidade. O que ela expressa é que cada ser humano no mundo é obra do amor de Deus, esta é a sua verdade de fé (não uma verdade como pretende a ciência exata). O modo como isso aconteceu não é o mais importante para a Bíblia, veja que ela incluiu duas narrativas sobre a mesma verdade no livro do Génesis, deixando claro que não tem receio das diversas interpretações.


A ciência afirma que houve uma evolução da vida; de formas inferiores até alcançar estágios mais complexos e chegar ao ser humano como somos atualmente. A palavra chave da ciência é a “evolução”. A teoria assegura que pode ter havido evolução da vida (da própria mente, da própria fala). Na ciência ficou popularizada a ideia do “evolucionismo” que afirma que o macaco foi evoluindo até chegar ao ser humano que somos hoje. Embora esta visão seja muito popular, no meio dos cientistas ela não é a mais aceita. Praticamente esta ideia tornou-se uma caricatura da teoria da evolução. Assim como o próprio “criacionismo” se popularizou até se tornar uma caricatura, isto é, a ideia de que Deus tomou a argila, criou o homem desse barro, tirou uma costela e criou a mulher. São imagens caricaturais de uma verdade de fé.

A teoria da evolução é a ciência que está à caminho, continua estudando, procurando responder às inúmeras perguntas sobre a origem do ser humano, o que não deveria, de forma nenhuma, ser ridicularizado pelas ideias dos “macacos inteligentes”, pelo menos até que possa ser demonstrado. A teoria da evolução é muito mais complexa do que a sua caricatura.  

Do mesmo modo, a fé num Deus criador, não deveria ser reduzida a uma imagem caricatural do barro, da costela etc., pois a fé num Deus criador não exclui, de modo algum, que possa ter havido a evolução. A Igreja católica, que sempre foi arredia à ciência, foi mudando a sua percepção e vendo-a não como inimiga, mas como importante aliada no fascinante caminho da compreensão do enigma humano.

Desde 1950 a Igreja católica aceita a “plausibilidade da evolução”. Isto significa que para a Igreja Católica é possível que tenha acontecido a evolução da vida. O que não significa negar que Deus não esteja por trás desse princípio vital.



(Na próxima postagem continuamos).



* As duas figuras que ilustram o texto pertencem à artista plástica italiana, Maria Di Cosmo.


3 comentários:

  1. Que bom tê-lo de volta com suas reflexões que muito nos ajudam, e ainda ter a possibilidade de compartilhar com nossos amigos para que também mais pessoas possam beber dessa fonte e com isso amadurecer na fé Muito obrigada! Deus te abençoe e ilumine sempre! Um fraterno abraço! Roseni

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  2. Grande!! cuanto original y sencillo Felicitaciones y gracias por alcanzarnos estas reflexiones que enrriquecen. Diana

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  3. Parabéns pela postagem. É bem dessa forma que eu penso; acredito que fazer leitura fundamentalista da Bíblia, coloca a pessoa em uma encruzilhada, ou se acredita na ciência ou em Deus.

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