quinta-feira, 30 de outubro de 2014

DEUS E O NOSSO TEMPO


A sociedade humana caminha não obstante as suas contradições (uma das mais graves é o progresso e a destruição ambiental). A humanidade cresceu em todos os sentidos, particularmente deu saltos de qualidade na área da técnica (lembremos que nossos avós tinham serias dificuldades de conservação dos alimentos, hoje têm pessoas que congelam a comida para um mês inteiro). Na área da saúde houve avanços extraordinários. É a tal da “evolução humana” que é visível com facilidade. Embora o coração humano continue sendo o mesmo de sempre, com sua generosidade e mesquinharia, suas alegrias e carências. Em poucas palavras, a humanidade caminha olhando para frente, avança devagar, mas avança.

Na área religiosa é natural que haja necessidade de compreendermos Deus também de forma diferente, de um modo maduro e realista.

Deus não tem que se adequar a nós, nem às necessidades que temos, nem ao momento que estamos vivendo. Não é porque hoje não temos mais tempo para nada que Deus deve ser servido como um hambúrguer; não é porque a gente tem um coração duro que Deus deva ser um Juiz; não é porque não conseguimos amar as pessoas que Deus também deve ser visto como Aquele que está mais preocupado com os nossos pecados. (Para muitos, Deus não passa de um Senhor velho com um grande livro nas mãos cuidando para pegar os nossos inúmeros erros e pecados diários).

Deus não tem que se adequar a nós, às nossas expectativas, às nossas necessidades, Ele não pode ser utilizado como um pano quente que pegamos toda vez que precisamos de um consolo. Toda vez que fazemos isso instrumentalizamos Deus, fazemos dele uma ferramenta.

A humanidade vai avançando, nós vamos evoluindo, mas Deus não precisa mudar, se mudasse como esperamos, seria como nós, apenas mais um. O que é e será sempre necessário da nossa parte é compreender Deus melhor. O que precisa mudar é a compreensão que temos de Deus. A nossa compreensão sempre foi, é, e será limitada.

O que sabemos muito bem é que Deus quis vir ao mundo e o fez através do seu Filho Jesus, o Verbo Encarnado. Ficamos sabendo muito sobre Deus, o necessário para que a nossa vida seja melhor, mais humana e mais alegre.

Um dia, conversando com uma pessoa que perdera um ser querido num acidente de carro, ela disse que era incapaz de entender o que tinha acontecido de fato. “Ainda não caiu a ficha”, revelou.

Foi exatamente isso que aconteceu com a Encarnação. A vinda de Jesus, o Deus conosco, resultou ser algo tão extraordinário, tão grande no seu significado, que ficamos sem compreender, “ainda não caiu a ficha”. Nesses dois mil anos de história do cristianismo foi uma luta compreensiva do significado do Deus conosco. Tivemos muitas dificuldades para entender o significado profundo do Deus que se fez homem, que nasceu de uma mulher como todos nós.

Onde está o problema? Em Deus? Não. O problema esteve sempre na compreensão limitada que tivemos deste Deus, embora existissem todos os elementos necessários para compreendê-lo bem.

Os quatro evangelhos possuem informações fundamentais para a compreensão do significado do Deus Encarnado, mas infelizmente em muitos momentos da nossa história os deixamos de lado para dar mais importância ao Direito Canônico (quantos padres da televisão ainda hoje preferem falar de Doutrinas antes de falar do Deus que é Misericórdia, por exemplo). A doutrina de uma religião é muito importante, aliás, nenhuma religião existe sem as doutrinas, mas para a vivência religiosa, para uma espiritualidade sadia dos fieis a doutrina não é suficiente.

Quando estamos com alguma dúvida é preferível procurar luzes nos evangelhos do que na Doutrina. Devemos nos perguntar o que Jesus faria e não o que a Instituição faria, o que a doutrina manda fazer.

Uma vez alguém disse uma verdade que ainda guardo até hoje. Quando uma pessoa na rua pede alguma coisa para comer é porque está com fome. Ela não quer ouvir um discurso bonito sobre a caridade ou sobre a necessidade de trabalhar para conseguir o seu pão. Ela está com fome, precisa com urgência de um pouco de pão. As pessoas que procuram Deus estão com fome e sede de Deus, o que elas querem ouvir é como Deus as ama; como Deus não se esqueceu jamais delas; como Deus continua sendo misericordioso com elas. Elas não estão interessadas em saber o que é que a Igreja diz com relação a um determinado assunto, não desejam saber qual é a doutrina da Igreja com relação a temas polêmicos. Elas procuram um Deus cheio de compaixão que as ajude a enfrentar a vida nos seus dia-a-dia. (A lição de moral, a explicação doutrinária vem depois, bem depois).

Deus não precisa se adequar a nós, nem ao que esperamos que Ele seja. O que precisamos fazer constantemente é interpretar a Encanação a partir das luzes da realidade que vivemos (o que é que as pessoas pensam hoje, quais são as suas necessidades, quais são os seus sonhos, quais são as suas buscas, quais são as suas dificuldades etc.). Para fazermos isso precisamos retornar às fontes primeiras que são os evangelhos e também à nossa rica tradição católica de mais de dois mil anos. (A tradição merece respeito, afinal são dois mil anos de caminhada no mundo, tempo suficiente para saber “mais ou menos” como funciona o coração humano. Por isso que é tão estranho que católicos tradicionais sejam capazes de mudar de religião porque na outra religião encontrou um Deus à sua medida e ao seu gosto).

Precisamos atualizar a nossa compreensão de Deus constantemente. Infelizmente, nesse sentido, a Igreja é lenta demais e hoje sabemos como a mentalidade humana muda com uma velocidade extraordinária (você se lembra quando a gente tinha medo de ir para o inferno? Pois hoje ninguém mais fala disso, ninguém tem medo disso. Os medos mudaram, hoje as pessoas tem pavor das coisas cotidianas como perder o emprego, ficar gordo-a, ser abandonado-a pela-o esposa-o, mas poucos se preocupam com a morte e com o que possa vir depois). É a mentalidade humana mudando constantemente com a sociedade que vai mudando.

Deus não precisa mudar, somos nós que temos que ter coragem de reinterpretar o significado do Deus conosco para que ilumine a nossa vida hoje.

Na história do cristianismo sempre houve mudança de perspectiva, de compreensão, houve até mesmo mudança na Doutrina. Quanto mais a gente compreender melhor o Deus da nossa vida será melhor.

Vejamos rapidamente as grandes mudanças compreensivas de Deus na nossa história. Após a morte de Jesus houve a novidade da Ressurreição. As pessoas eram capazes até mesmo de entregar a vida para testemunhar esta verdade. Ele está vivo! Ele ressuscitou! Neste primeiro momento do cristianismo Deus foi vivido como força do Espírito Santo, a memória recente de Jesus levava as comunidades a viver a espiritualidade como algo cotidiano, vivo, espiritual. O Senhor está vivo, Ele nos dá força e coragem, a nossa vida deve ser igual ao Dele. A característica principal do cristianismo neste período foi a vivacidade do Espírito Santo. Como segundo momento surge a compreensão de Deus não mais de modo espiritual, mas de modo intelectual. O que caracteriza este período é Saber sobre Deus, o estudo sobre Ele (não quer dizer que a primeira característica tenha desaparecido completamente, o que acontece é que Deus é visto como algo a ser Entendido, compreendido através de estudos). E ultimamente procuramos viver Deus como Alguém que se comunica dando ênfase à revelação de Deus através do seu filho Jesus.

Espírito, Intelecto, Comunicação, foram os três modos essenciais de compreensão de Deus. Nas próximas postagens falaremos de cada uma destas etapas e como continuam presentes até os nossos dias.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

DEUS NOS AMOU PRIMEIRO (1 Jo 4,19)


Jesus Cristo é a presença do Pai, por Jesus ficamos sabendo muito de Deus; não tudo, porque Ele continuará sendo um mistério e é muito bom que assim seja, pois nós, seres humanos, temos a tentação de dominar o que conhecemos demais. Sempre que a teologia pretendeu saber tudo de Deus correu o risco de convertê-lo num ídolo. Quanta tristeza num Deus que nem pode se mexer, que nem pode falar, porque nós nos mexemos e falamos por Ele. Mas com frequência falamos apenas por nós mesmos e não em nome Dele. Aquilo que conheço totalmente pode ser dominado com facilidade, pode ser manipulado e convertido num ídolo.

Por Jesus ficamos sabendo, pelo menos parcialmente, de Deus, mas o suficiente para que a nossa vida seja muito melhor. O Concílio Vaticano II afirma que sabemos o suficiente para a nossa salvação, compreendendo “salvação” aqui como uma vida em Deus aqui mesmo no mundo e com a esperança depois, que esse encontro seja pleno (como essa segunda parte ainda é uma esperança somos obrigados a nos concentrar e a nos preocupar no “aqui e agora”, no nosso mundo, na nossa sociedade, na nossa vida, na vida das pessoas, dos pais, dos casais, dos filhos etc.).

O Deus revelado por Jesus é um convite à liberdade; infelizmente a religião organizada apresentou Deus muito mais como um grande Juiz e não como um Pai amoroso. (A própria Igreja nos foi apresentada como uma daquelas madrastas bruxas, das histórias infantis, que fazem sofrer os filhos que não são seus, colocando sobre eles pesos que elas são incapazes de carregar. Graças a Deus o Concílio Vaticano II procurou mudar isso e o conseguiu em parte; ultimamente o Papa Francisco está se esforçando para mostrar-nos que a Igreja deve ser uma mãe e não uma madrasta).

Existem, infelizmente, muitos religiosos exaltados falando em nome de Deus e que não falam de outras coisas senão da sexualidade, “que sexo é pecado”, “que isto ou aquilo”, dando um peso exagerado a tais questões. Quando alguém tem fixação por estes temas deveria procurar ajuda psicológica com toda tranquilidade. Estas pessoas pensam que o único pecado importante para Deus tem a ver com questões sexuais. É verdade que uma vida desordenada neste âmbito leva quase sempre à solidão e à tristeza. Aliás, toda desordem na vida tem os mesmos efeitos, todas as dependências levam à tristeza, seja do álcool, do sexo, das drogas, das pessoas, dos ídolos etc.

A religião autêntica deve ser caminho de liberdade e não de dependência. Não existe nada mais triste do que a dependência. “Eu amo você porque dependo de você”, isso não é amor, é dependência. “Deus, vou rezar porque senão fico triste”, isso não é oração é refúgio. “Vou dar um prato de alimento a alguém, porque assim poderei ir para o céu”, isso não é caridade, é interesse. “Nossa Senhora, vou fazer uma promessa, caminharei até o seu santuário se passar de ano na escola”, isso não é confiança, mas espírito comercial.

A religião autêntica é um caminho de libertação (uso esta palavra com temor, pois muitos não podem ouvir esta palavra porque a associam com a Teologia da Libertação, que foi demonizada por pessoas que jamais a conheceram). Utilizo esta palavra recorrendo ao Evangelho de São João, “Se vocês guardarem a minha palavra, vocês de fato serão meus discípulos; conhecerão a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8, 31-32). Jesus é o rosto libertador de Deus Pai, aquele que veio para que a nossa vida seja mais, para que seja uma vida abundante.

Existem muitas passagem bíblicas que nos ajudam a perceber esta proposta de Jesus; por exemplo as bodas de Caná, narrada apenas por São João, nos outros evangelhos não existe esta festa. Ela ilustra muito bem como deve ser compreendida a “vida em abundância”, uma vida alegre, confiante, bem humorada, comprometida, responsável, mas também com uma mesa cheia entre familiares e amigos, com bom vinho, com uma comida boa; não é isso que fazemos aos domingos quando compartilhamos, na casa da mãe, aquela comida gostosa?, e tem cerveja, e tem vinho, e tem frango e carne, feijão e até sobremesa?

Então alguém poderá dizer, “mas isso nem todos têm”; é verdade, mas todos deveriam ter, se não têm será por que alguma coisa está errada. Injustiça, corrupção, pobreza, etc. O que sei é que o mundo tem o suficiente para que em cada mesa haja a alegria da abundância e da festa.

Uma preciosidade, com relação a esta queixa, podemos encontrar na passagem do Evangelho de São João, quando Judas protesta ao ver a mulher derramar um frasco inteiro de perfume nos pés de Jesus. Judas disse que poderiam vender esse perfume para ajudar muitos pobres. Então o comentarista afirma que Judas não estava preocupado com os pobres, pois ele era o encarregado pela bolsa do dinheiro e era um ladrão. (Cf. Jo 12, 3-6). O que importava naquele momento não era o caro perfume, nem os pobres, mas um gesto de amor, de gratidão, de alguém que estava perdida e que fora recuperada. Ela encontrou uma forma de agradecer “desperdiçando” um perfume muito caro. Um gesto de amor nunca pode ser um desperdício.

Uma avó recebe os seus netos um sábado à tarde para verem desenho animado na casa dela. Os netos pedem pipoca e guaraná para ela. Vocês acham que a avó, que vai à cozinha preparar a pipoca, ficará contabilizando ou pensando, “não posso gastar todo o saco de pipoca, pois semana que vem vão querer mais”? A avó não está interessada na semana que vem, o que ela quer é ver os seus netos felizes comendo pipoca e bebendo guaraná até não quererem mais. A abundância da pipoca é sinal de uma vida abundante, a abundância é sinal do Reino dos Céus. Deus Pai é como essa avó, foi o que Jesus veio nos revelar com as suas palavras, atitudes e gestos.

O caminho da libertação é um longo processo e o mais importante não é ficar pensando na chegada, mas estar atento ao caminho que se está fazendo no dia-a-dia.

Optar por Deus é a possibilidade mais bonita na nossa relação com Deus. São João afirma que Ele nos amou por primeiro. Isto é fantástico, maravilhoso, saber que Deus Pai nos amou desde sempre.

O exemplo disso pode ser a imagem da mãe que aguarda o nascimento do seu filho. A minha irmã número 3, (tenho 4), está esperando o seu segundo filho; ela e o seu marido estão correndo para deixar tudo prontinho para a chegada dessa criança. A minha sobrinha está feliz porque terá um irmãozinho; a minha irmã me manda periodicamente notícias sobre o seu estado, tira foto da barrigona e, dessa forma, me torna partícipe da sua alegria. Esta criança pode ter certeza que é aguardada com muito amor pelos seus pais, pela sua irmãzinha e por todos os familiares e amigos.

Deus é assim conosco, nos amou desde sempre e, com certeza o que deseja para cada um de nós é: “muita pipoca e guaraná durante a vida inteira”. Claro, o sonho que Deus tem para cada um e cada uma é que a nossa vida seja uma vida abundante.

Somente pode optar quem é livre, saber que somos amados não nos condiciona a dizer Sim. (Quantos namorados e namoradas tentaram oferecer os seus amores aos seus pretendentes e receberam “não” como resposta; o amor que sentimos não garante que também, o outro ou a outra, sinta o mesmo que sentimos).

Escolher Deus na nossa vida deve ser expressão da nossa liberdade. Optar por Deus é poder dizer “eu também amo você e desejo caminhar ao seu lado”. É o nosso sim a Deus, é a nossa resposta. É o sinal da nossa fé. É o início de um caminho juntos, você e Deus. Um caminho que nasceu de um amor ofertado primeiramente por Deus, “Ele nos amou primeiro”, que agora se completa com o nosso Sim.

Eis a fé como nossa resposta, da parte que nos cabe, a nossa atitude concreta que nos abre um caminho novo; um caminho que fazemos na confiança total nesse Deus que nos amou por primeiro.

* A primeira imagem é do artista Sergio Ricciuto.
* A segunda imagem é a minha irmã esperando o Dante.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

A FÉ CONFIANTE

Era um sabiá, fiquei sabendo depois, pois sou incapaz de reconhecer as espécies das aves. O pássaro veio até a janela. Não fiz nenhum movimento brusco para não assustá-lo, mas ele se assustou e voou para dentro do quarto arremetendo contra o vidro com todas as suas forças, com certeza o animalzinho por instinto esperava que aquele material transparente fosse a sua saída, a sua libertação.

Bichinho que não pensa continuou na sua tentativa, porém cada vez com menos força. Levantei bem devagar, pois não queria interferir naquela luta titânica pela sobrevivência. Quando caiu aos meus pés, tomei-o com cuidado e, sem saber o que fazer, ofereci-lhe um pouco de água. Não sei se estava com sede, mas o meu instinto me levou a oferecer-lhe o líquido vital; molhei a sua cabecinha com umas gotas de água.

Coloquei-o na janela para que pudesse voar quando quisesse ou pudesse. Ele não esperou muito. Voou, mas imediatamente pousou num lugar mais seguro, ficou ali na sombra um pouco atordoado após uma experiência que para ele terá sido terrível.

Não gosto de animais domesticados, nem de gato, nem de cachorros, mas admiro as pessoas que os têm e se esmeram por lhes oferecer conforto. Eu os prefiro livres, pássaros na gaiola então para mim é insuportável. Creio que muitas vezes os instrumentalizamos para que a nossa vida não seja tão solitária. Mas essa é outra história.

A inesperada visita do pássaro me fez pensar e me fez decidir escrever esta semana sobre o sentido da nossa fé.

Aquela vida quente em minhas mãos me fez pensar sobre a grandeza e a miséria da nossa vida. A grandeza porque com certeza é um milagre, a vida só pode ser um milagre, por isso desconfio muito daqueles que dizem que ela seja fruto de um acaso. Mas cada um tem o direito de acreditar como quiser ou como lhe fizeram crer. A vida para mim é o mais sagrado que possa existir, é o terreno comum onde todos nos encontramos, onde podemos nos entender com respeito, pois o resto é discutível. A cor da pele, a cor dos olhos, a medida do calçado, o modo de se pentear, o deus ou deuses em que você acredita, as suas preferências políticas, o time ao qual você torce; tudo é discutível. Mas a vida não pode ser discutida, pois ela é sagrada. Entendo pela palavra “sagrada” o que não pode ser banalizado. A vida humana é única, por isso toda forma de violência contra ela sempre será um crime.

Por que é tão aberrante a violência contra as crianças? Porque trata-se de uma vida indefesa.

Os quatro evangelistas estão de acordo em que Jesus gostava muito das crianças e que, em várias ocasiões, as colocou como símbolo do Reino de Deus. Os professores, porém, sabem muito bem que as crianças não são boazinhas pelo mero fato de serem crianças, elas são capazes de atos inesperados, e com frequência costumam ser bastante cruéis com os seus coleguinhas. Jesus não as colocou como símbolo porque sejam inocentes ou boazinhas.

Os pequeninos são exemplo do Reino porque estão completamente nas mãos dos adultos. Todos sabemos que é muito fácil de enganar uma criança, os pais são especialistas em inventar caminhos engenhosos para convencer seus filhos a fazerem o que lhes parece corretos.

O que resulta aberrante é quando esses adultos, que deveriam cuidar, proteger, se aproveitam da fragilidade dos pequenos. É aberrante que um adulto trate uma criança como se ela fosse uma pessoa adulta.

As crianças confiam plenamente nos adultos, confiam nos seus pais, nos seus irmãos mais velhos, confiam nos professores, nas catequistas, nos médicos, nos enfermeiros, confiam nos seus tios e tias, confiam nos vizinhos. A princípio, para elas, os adultos representam um porto seguro.

Eis a bela imagem que Jesus propõe, se vocês não tem essa confiança das crianças em Deus, nosso Pai, dificilmente entenderão a dinâmica do reino de Deus.

A fé madura em Deus é a confiança das crianças nele, ou seja, a certeza que Ele é o adulto em quem se pode confiar, com a diferença radical de que não estamos mais diante de um adulto que pode ser um grande egoísta, mas diante de um adulto que é um amoroso Pai.

A fé confiante em Deus significa ter certeza de que estamos nas mãos Dele. Esta deve ser uma certeza de sentido, isto é, o que nos dá alegria de viver, saber que todos os dias somos carregados pelo amor do Pai. Esta certeza deve nos ajudar a sair para a vida com alegria e com confiança.

O desafio para o homem e mulher de fé madura é testemunhar no pequeno espaço de todos os dias este amor. Este amor que deve ser concreto no rosto da esposa, do esposo, dos filhos, dos pais, dos jovens, dos adultos, dos idosos. Este amor que deve ser real com os vizinhos, com os colegas de trabalho, com as pessoas nas ruas. O amor não pode ser apenas uma boa intenção.

Devemos procurar viver a nossa fé diariamente com a limitação que cada um têm: um trabalho chato, uns vizinhos barulhentos e mal educados, uns pais que não são como imaginamos, uma comunidade fofoqueira e pouca acolhedora, pessoas que dizem ter fé, mas confiam muito mais nas suas próprias forças.

A fé confiante deve ser real e não apenas uma poesia que faz estremecer o nosso coração, por isso a fé passa pelo nosso “bom dia”, pelo nosso “me desculpe”, pelo nosso bom humor, pelo nosso aprender a rir de nós mesmos, dos nossos defeitos. (Costumo repetir que quando a gente consegue rir dos nossos próprios defeitos, com certeza vamos nos divertir bastante).

A fé com espírito de criança, ao contrário de ser uma fé ingênua, é uma fé madura. A fé ingênua, infantil é aquela que dá mais importância aos enfeites da religião do que ao essencial dela. (Em uma ocasião uma senhora ficou magoada comigo depois de me ouvir dizer que preferia Nossa Senhora como Mãe que como Rainha. As rainhas humanas são, com frequência, déspotas, mas a maioria absoluta das mães que conheço me fala da doçura do rosto maternal do próprio Deus).  Para a minha fé, que Maria seja rainha ou não, não é importante, pois considero isso apenas como um “enfeite” da religião. Amo Maria porque me aproxima do seu filho Jesus, amo Jesus porque me mostrou o coração de Deus, o coração do Pai.  Isto para mim é essencial da fé madura que tem a característica do rosto da criança, confiante, alegre, bem humorado e, sobretudo que é capaz de ser feliz com pouca coisa.

Vivemos um tempo de muito barulho, de muitas imagens, de muitas palavras soltas, a fé também precisa se recolher como uma criança confiante nos braços da mãe. A fé cresce, amadurece, sempre mais quando se torna livre para voar como o pássaro que tem o céu como a sua casa. A fé é livre quando é capaz de assegurar o que é essencial. O amor ao próximo, a compaixão, a busca pela justiça e pela verdade, com certeza, são essenciais para todos os cristãos que procuram viver a fé confiante no seu dia-a-dia.

* Imagens ilustrativas da internet.

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

UM OLHAR AO SÍNODO SOBRE A FAMÍLIA


“O sonho de Deus sempre se embate com a hipocrisia de alguns dos seus servidores. (...) Podemos ‘frustrar’ o sonho de Deus, se não nos deixarmos guiar pelo Espírito Santo. (...) O Espírito dá-nos a sabedoria, que supera a ciência, para trabalharmos generosamente com verdadeira liberdade e humilde criatividade” (Palavras do Papa Francisco na abertura do Sínodo).

Nesta postagem vou fazer um parêntesis sobre o tema que estamos tratando para pensar com vocês sobre a atualidade da Igreja Católica, particularmente no que se refere ao Sínodo que está acontecendo em Roma, cujo tema é: “Os desafios pastorais da família no contexto da evangelização”. Começou dia seis e vai até dia dezenove deste mês (outubro – 2014). Além da questão da família também está na pauta temas que para a Igreja são “urgentes” como a pobreza, a imigração e a questão da violência. O Sínodo concluirá com a beatificação do papa Paulo VI. 

O Sínodo começou com um sinal interessante que tem a ver com a linguagem. O Papa Francisco quis que a linguagem não seja mais o latim e sim o italiano a língua oficial do encontro. Para início de conversa isto é sensacional, pois é um sinal claro de mudança, de renovação. É sabido que o latim como língua falada desapareceu há séculos permanecendo apenas no seio da igreja, praticamente, apenas como linguagem jurídica. 

Quando era estudante questionava a mania acadêmica de criar um dialético que os intelectuais costumavam utilizar com deleite. Achava engraçado que procurassem o modo de não ser compreendido por leigos, por pessoas que não eram iniciadas nesse dialeto da academia. Criava-se, a meu ver, um segundo andar onde, as pessoas que moravam no primeiro andar não tinham acesso. 

A linguagem é fundamental, por isso creio que a decisão de adotar a língua italiana, uma língua de pessoas vivas, é revolucionária. (Naturalmente a ala tradicionalista da Igreja não vai gostar muito desta ideia. Para essas pessoas devemos lembrar sempre que o nosso Mestre falava limpidamente através de parábolas muito simples e através de poesia como as Bem-aventuranças). 

É preciso deixar claro que a Igreja não está questionando a verdade sobre o matrimônio, que  é indissolúvel. O que o Sínodo precisa ver é a realidade de pessoas que convivem num relacionamento estável, que não receberam o sacramento porque não querem, por diversos motivos, ou porque já foram casados na Igreja. O que o Sínodo precisa ver é o modo como essas pessoas podem ser melhor acolhidas na Igreja. Não se trata de afirmar que elas sejam melhores, trata-se de ver como as pastorais da Igreja, ao invés de excluir podem acolher como o próprio Jesus faria. 

Lembro que, numa conversa informal, perguntei a um amigo que vivia com uma mulher sem ter casado na igreja, por que comungava, se sabia o que a Igreja dizia com relação a esse fato. O meu amigo olhou-me e respondeu numa tranquilidade que sabia o que a Igreja dizia e que ele comungava porque Cristo Eucarístico era muito importante para ele. Fiquei quieto, não disse nada a ele, não fiz nenhum discurso moralista, pois ele sabia o que a Igreja dizia com relação às pessoas que convivia sem o sacramento do matrimônio. Eu também sabia o que Jesus disse quando lhe perguntaram sobre a sua missão, que Ele veio para os pobres, para os doentes, para aqueles que justamente precisam dele. (Não será necessário lembrar que os “justos e os perfeitos” não precisam de muita coisa, pois já estão na presença de Deus). Quem precisa de acolhida são as pessoas que quase nunca formam acolhidas. 

Nas comunidades é possível perceber que as nossas práticas pastorais quase sempre se dirigem às pessoas que fazem parte da comunidade, pessoas que vem sempre, que procuram caminhar com a comunidade. As pastorais não são pensadas para acolher pessoas que não desejam fazer parte da comunidade  porque não se sentem acolhidas ou porque sentem que não se enquadram dentro da moral cristã. 

Ainda é cedo para chegarmos a conclusões com relação ao Sínodo, porém há esperança que oficialmente o nosso papa diga como devemos tratar os irmãos e as irmãs que por ventura não deram certo no primeiro casamento e que buscaram nova chance numa segunda união. Na “prática pastoral” a acolhida deve acontecer de fato, e em muitas comunidades ela acontece quando o bispo ou o pároco a incentiva. Na acolhida não está em jogo em primeiro lugar a comunhão, mas a valorização das pessoas, da nova família, os filhos como frutos desse amor. 

Na prática pastoral o pastor deve conhecer os seus filhos e filhas. Lembro aqui o que disse um bispo num curso de formação: “eu tenho a obrigação de conhecer esses meus irmãos. Sabem o que eu fazia?,  levava a comunhão para esses casais na casas deles, porque não podia negar a comunhão para um casal que vive junto há vinte anos, que procura educar os filhos com as dificuldades que todo mundo passa. Ou será que alguém seria capaz de dizer que nessa família não existe o amor? O pastor deve conhecer os seus irmãos e irmãs e se for necessário levar o Cristo Eucarístico até as casas deles. Sabem por que fazia questão de levar a comunhão até as casas dessas pessoas? Por temor de escandalizar “os justos” da minha comunidade”, disse o velho bispo. 

Aceitar uma situação não significa estar de acordo, não significa concordar, mas como Igreja, o mínimo que podemos fazer é olhar nos olhos das pessoas e acolhê-las como irmãos e irmãs que, como nós, estão procurando viver uma vida digna na graça de Deus. 

Muitas pessoas se escandalizam porque acham que a santidade, antes de tudo, passa pela sexualidade. De modo nenhum, a santidade passa, antes de tudo, pela dignidade de sermos “imagem e semelhança de Deus”. O que torna alguém santo ou santa não é a sexualidade, mas o infinito amor de Deus Pai por cada um de nós. 

O sínodo se preocupa, evidentemente, com as avalanches que a família vêm suportando e, por isso, procurará encorajar os jovens cristãos a assumir com alegria e coragem o matrimônio como a vivência do amor que receberam do alto. E animar aqueles que já são casados a perseverar no amor, a não se deixar dominar pelo espírito do mundo que consiste no descarte (uso até que serve, se encontro algo melhor posso trocar!). Aqueles que são casados e bem casados que ajudem os jovens a ver que o amor verdadeiro não é aquele que como um terremoto deve sacudir tudo, o amor também é um terremoto sim, mas também é rotina, também é dor, doação, sacrifício, ternura, entrega, paciência. O amor verdadeiro é aquele que é provado no momento da doença, das perdas, das decepções. No mundo onde tudo e descartável, pensar que o matrimônio será para a vida toda parece longe da realidade, mas temos infinitas provas de que o amor bem cuidado pode durar sempre. 

Se por ventura, alguém se separou e encontrou um novo amor, deve saber que a Igreja ainda é a sua casa e que o elemento que deve ajudar a medir é o amor honesto. Não esqueçamos que Deus é amor, portanto onde está o amor, com certeza, Deus aí está.