terça-feira, 30 de setembro de 2014

SOBRE O PECADO ORIGINAL (FINAL)


Quando uma catequista perguntar às crianças da catequese sobre o motivo da vinda de Jesus ao mundo a resposta que ouvirá será “Para nos salvar dos nossos pecados”. Não é uma resposta errada, mas terrivelmente incompleta. Com certeza esta “quase convicção” da importância que tem o pecado para a vinda do Filho de Deus ao mundo, é resquício da opção teológica primeira, cuja consequência evidente é a visão extremamente negativa que temos da pessoa  (pessimismo antropológico). O ser humano é um pecador (sabemos que é uma verdade, a aceitamos como verdade, embora a maioria das pessoas não se pergunte sobre o significado do ser pecador).

Sendo o ser humano pecador, marcado desde o seu nascimento pela “mancha” do pecado original, vivendo numa sociedade corrupta, devassa, injusta, a vinda de Jesus Cristo é uma boa resposta para limpar tudo isso. Mas acontece que Ele veio há dos mil anos atrás e o ser humano continua sendo marcado pelo pecado e continua vivendo numa sociedade com aquelas mesmas características. Terá falhado a vinda e a missão de Jesus Cristo? Se acreditarmos que Jesus veio, antes de tudo, para limpar nossos pecados podemos dizer que Ele deve sentir-se fracassado. Onde estará o problema? Na encarnação do Filho de Deus? Não, o problema está na interpretação equivocada que fizemos. Esta confusão começou com a leitura equivocada dos primeiros capítulos do Gênesis.

A história de Adão e Eva pertence ao mundo da linguagem alegórica, por isso não pode ser considerada literalmente. Ter fundamentado sobre essa história alegórica algo tão importante como a condição pecadora do ser humano ainda rende mal-entendidos até os nossos dias. Uma linguagem alegórica pode e deve ser interpretada para colher-lhe a sua riqueza e jamais utilizá-la literalmente. O uso literal da Escritura geralmente leva ao fanatismo.

A desobediência de Adão e Eva merece ser mais bem interpretada, pois sem dúvida, expressa uma verdade importante, assim como as outras passagens do livro do Gênesis. Desde as duas histórias da criação que encontramos nos primeiros capítulos do Gênesis; a desobediência e expulsão do paraíso de Adão e Eva; a história de Caim e Abel; o dilúvio e a história de Noé; a nova humanidade a partir dos descendentes de Noé e a história da Torre de Babel. Todas estas histórias têm uma intensão instrutiva, explicativa para o povo judeu. Essas pessoas jamais perguntaram se tudo aquilo aconteceu de fato, mas com certeza perguntaram sobre o significado dessas narrações.

A interpretação literal seria terrível, pois nos levaria a uma compreensão aterrorizante de Deus. Imaginem a Deus criando um jardim onde tudo era belo e bom, mas proíbe de comer de um fruto. Será que Deus era bobo para não conhecer o coração da sua criação? (Alguns costumam dizer: Deus fez isso para pôr à prova Adão e Eva. Quem costuma colocar à prova somos nós, as pessoas, pois não sabemos amar). Deus sabia muito bem que Adão e Eva  comeriam daquele fruto; parece que Deus estava brincando de esconde-esconde com eles, mas as consequências dessa “brincadeira” é terrível, expulsão e viver na dor pelo resto da vida.

Na história de Caim e Abel, vemos Deus rejeitar uma oferenda e aceitar outra. Será que Deus é tão duro para rejeitar a oferenda de um ser humano e aceitar a do outro com agrado? Que Deus seria esse que faz distinções entre os seus filhos (Nem as mães, que são humanas, fazem isso).

A história do dilúvio é ainda pior se a considerarmos literalmente; Deus decide acabar com o mundo, decide matar por causa da maldade humana; mas será que Deus não poderia perdoar os seus filhos? Esse gesto de afogar todo mundo assemelha-se muito mais à ira dos homens do que ao rosto bondoso de um Deus criador.

Depois daquela mortandade provocada por Deus surge uma nova humanidade (o que no fim não será melhor que a primeira, pois têm maldade, roubos, assassinatos, corrupção), terá valido a pena ter acabado com toda uma geração? Terá falhado a intenção de Deus? Finalmente temos a história da Torre de Babel. Os homens construíram uma Torre desejando chegar até Deus, mas Ele não gostou da ideia e destrói o projeto, dividindo os homens em diversas línguas, que depois da confusão, cada grupo separou-se e foram procurar um lugar para viver (como se Deus gostasse da divisão).

Quero dizer com isto que costumamos aceitar com facilidade algumas destas histórias como alegorias e outras, porém, interpretamos ao pé da letra. Todas estas histórias devem ser interpretadas como alegorias. Devemos perguntar sobre o sentido que teve para o povo judeu. Sempre será equívoco perguntar se aconteceram de fato ou não, pois isso seria trair a intenção da Sagrada Escritura, cuja preocupação é oferecer sentido e não concretamente história fatual (de fato).

Dito isto, temos que aceitar que a história de Adão e Eva tem uma intenção, tem um sentido que, naquele tempo, o povo judeu, compreendeu e o ajudou a viver melhor.

Para colhermos o sentido de uma narrativa alegórica precisamos interpretar. Depois de compreenderem isso, os teólogos católicos, especialmente os biblistas, começaram a procurar o sentido da narrativa de Adão e Eva. A conclusão é que essa narrativa refere-se a uma verdade humana, a uma condição da realidade.

Em síntese, o ser humano desde que nasce está pronto para o “pecado”, para a realidade ambígua do mundo. O mundo não pode ser visto apenas como o lugar do mal, do pecado, pois também é lugar do bem, do amor, da graça. As atitudes livres, as opções livres que fazemos podem ter consequências boas ou más.

O pecado original é a condição do ser humano que está pronto para realidade total do mundo, ele pode assumir na sua vida o caminho que lhe fará viver melhor, como ser humano, como imagem e semelhança de Deus, mas o que acontece frequentemente na prática é que não costumamos escolher o caminho que nos fará viver, mas o caminho que nos faz sofrer, que produz sofrimento, embora almejemos viver uma vida serena e boa com a dignidade humana intacta.

A realidade humana tem algumas características comuns. Por exemplo, se você tem que trabalhar oito horas, você trabalharia dez horas sem receber mais por isso (claro que não!). Você carregaria uma mochila com vinte quilos se pudesse carregar apenas uma de dez (claro que não!). Você caminharia quinze quilômetros se a meta fosse caminhar apenas oito quilômetros (claro que não!). A primeira característica que ninguém de nós escapa é esta realidade do “menor esforço”. Este é o primeiro mandamento que todos nós obedecemos sem protestar.

O pecado original pode ser comparado a uma atração para o “menor esforço”, uma procura egoísta de conveniência pessoal. É uma marca que trazemos desde que nascemos.

Essa realidade se torna terrível quando os exemplos vão crescendo em importância. Você seria honesto se, na política, lhe oferecessem uma mala com cem mil reais por uma assinatura para favorecer um projeto (está ficando difícil!). Você seria fiel à sua esposa ou ao seu esposo, caso aparecesse uma pessoa encantadora na sua vida e lhe oferecesse o que você sempre sonhou (e agora!). Os exemplos podem ir crescendo, mas o mais importante é percebermos que todos nós podemos ceder à lei do “menor esforço”.

Essa comparação nos ajuda a compreender que o pecado original é uma realidade que carregamos, que faz parte do que somos, é a possibilidade da ambiguidade no mundo.

Quando os judeus ouviram a história de Adão e Eva, compreenderam imediatamente que uma parte do povo estava se entregando à vida fácil, à lei do menor esforço.

(Vamos ver isso na próxima postagem)

* A primeira imagem é de Michelangelo.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

PECADO ORIGINAL (Continuação)

O conceito de pecado original é fundamentalmente cristão, nem no judaísmo e nem no islamismo se encontra esta concepção. A ideia é essencialmente paulina; São Paulo viu na interpretação dos primeiros capítulos do livro do Gênesis a possibilidade de apresentar ao mundo o “novo Adão”, isto é, Jesus Cristo. O que significa que o pecado original seria como um instrumento (um meio), mas infelizmente converteu-se no centro do cristianismo (aqui está a gravidade e a importância do tema). Simplificando sempre ao extremo podemos afirmar que Jesus Cristo falou de Amor e os cristãos falaram de Pecado. Claro que isso desembocou, mais tarde, em ideias muito mais radicais e perigosas (como exemplo podemos dizer que, antes do Concílio Vaticano II, houve teólogos cristãos que pensaram que as criancinhas que morressem sem batismo poderiam ser condenadas eternamente ao inferno. A ideia que está por trás é justamente a do pecado original que somente poderia ser limpa com a água do batismo. Não faz muito, na igreja Católica, um sacerdote famoso começou a batizar a memória de crianças falecidas sem o batismo, apenas para dizer que em muitos casos, mesmo com o Concílio Vaticano II, ainda não conseguimos reinterpretar as verdades de Cristo).

Apenas para esclarecer: a nossa intenção aqui não é, de modo nenhum, criticar gratuitamente ninguém, porém não podemos perder de vista a intenção deste blog, que é a formação dos leigos comprometidos, não podemos ir adiante se não falarmos claramente como pessoas adultas com a tranquilidade de quem faz as coisas porque ama e acredita na proposta de vida nova de Jesus Cristo.

Espero que tenham percebido a importância de vermos a base da nossa fé e a necessidade que temos de reinterpretar essa base com a luz da renovação da teologia e do Concílio Vaticano II.

Para muitos catequistas o tema do pecado original continua sendo espinhoso. Ficam encabulados na hora de falar sobre ele e para não errar repetem a mesma catequese que receberam. (O que é o pecado original? É o pecado dos nossos primeiros pais que consiste na desobediência a Deus que vem passando de geração a geração como uma herança e que pode ser limpo apenas por meio de Jesus Cristo). Só que esta resposta já não funciona como já dissemos antes, pois a crítica literária nos mostrou que os primeiros capítulos do Gênesis utilizam uma linguagem figurada. E verdades tão importantes não podem ser fundamentadas sobre linguagem figurada. Pois bem, chegamos até aqui.

Vamos dar um passo. Os judeus quando narram essa passagem da desobediência de Adão e Eva, a história da maçã e a expulsão do paraíso, têm outra intenção, mais do que explicar a condição hereditária do pecado humano. Não querem dizer que foi por Adão e Eva que entrou o pecado no mundo e que por isso fomos manchados eternamente com esse pecado inicial.

A intenção dos judeus é compreender uma situação concreta. Segundo os estudiosos, o povo que saiu do Egito encontrava-se no deserto, procurando sobreviver a tudo o que significa viver na condição do deserto, onde faltava tudo, desde alimentação, água, moradia decente etc. Para piorar a situação ocorreram situações que abalaram a comunidade. Quais seriam essas situações? Brigas, desentendimentos, fofocas, falta de perseverança na fé. Filhos que brigam com os pais, pais que brigam com os seus filhos, esposos que desrespeitam as suas mulheres, esposas que fazem o mesmo (podemos imaginar situações que acontecem ainda hoje numa comunidade para compreendermos melhor o que o povo judeu vivia).

Em síntese: a comunidade estaria vivenciando uma situação delicada de conflito e por isso era preciso encontrar uma explicação.

Para procurar compreender a situação, os sábios da comunidade reúnem o povo para instruí-lo, para orientá-lo e ajuda-lo a retomar o caminho normal da vida em comunidade. De modo que os sábios começaram a narrar a história de Adão e Eva iniciando pela criação do “lugar perfeito”, um jardim, denominado paraíso, onde tudo estava ao alcance das mãos sem necessidade de esforço algum. Mas tudo mudou quando eles decidiram desobedecer a Deus a partir do convite feito por uma serpente. Foram expulsos do jardim e tiveram que enfrentar todo tipo de maldade.

Os sábios tentaram responder a esta pergunta: porque a nossa comunidade está mal? A resposta teria sido: estamos mal porque somos desobedientes a Deus. Porque nos deixamos seduzir por outros convites e não por Deus que nos tirou da escravidão do Egito. Os sábios narram a história da expulsão do paraíso, do pecado de Adão e Eva a fim de convencer o povo a voltar à fidelidade.

(Aqui começa outro tema que vamos ver mais adiante, o tema do mal no mundo. A comunidade judaica com certeza estava se perguntando como o mal tinha entrado na comunidade, pois era possível ver as suas consequências claras nos pais e filhos em brigas, nas fofocas, nas falsidades, nas incoerências, na falta de empenho pela fé etc.).

Quero deixar claro deste modo que os judeus não tinham a intenção de explicar o pecado original como uma realidade dos pais a partir da  qual fomos fatalmente condenados eternamente.

Os judeus tinham uma situação de vida, tinham problemas concretos e tentaram iluminar a situação procurando respostas na relação com Deus. Concluíram que havia maldade na comunidade porque muitos eram infiéis a Deus. Para os sábios, para os dirigentes da comunidade judaica, a situação era clara. “Estamos assim porque somos infiéis, porque somos desobedientes. O que é que vamos fazer se quisermos retomar o caminho? Voltar à fidelidade, procurar recompor o que foi quebrado”.

O bem-estar somente retornará à comunidade se o povo voltar à fidelidade. (Vejam que a narrativa de Adão e Eva teve uma utilidade muito concreta e não havia, de modo nenhum, a pretensão de explicar uma suposta hereditariedade do pecado. Essa interpretação é de São Paulo que chegou até nós).

O que os sábios fizeram narrando a história de Adão e Eva foi identificar uma realidade humana. Essa sim é uma realidade universal da qual nenhum homem e nenhuma mulher pode escapar: a capacidade de fazer o mal e a liberdade de optar pelo caminho do bem e/ou pelo caminho do mal. Essa verdade humana ninguém, que tenha bom senso, poderá negar. Somos todos marcados por tal capacidade e por tal possibilidade de opção. Por isso o pecado original deve ser reinterpretado hoje à luz de Jesus Cristo e do Concílio Vaticano II.


* As duas figuras ilustrativas são de Michelangelo. Cenas que ilustran a Capela Sistina.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

A BASE DA NOSSA FÉ - PECADO ORIGINAL

Após uma leitura atenta das passagens do Gênesis (Gn 2, 16-17. 3, 1-24) percebemos a proibição de comer de uma certa árvore que estava no jardim, cuja desobediência poderia levar à morte. Depois entra em cena a serpente que convence Eva a comer do fruto e a oferecer ao seu companheiro que também o experimentou. Deus que estava passeando pelo jardim chama e descobre que os dois comeram do fruto e foram expulsos desse paraíso com as maldições que receberam. Deus faz umas roupas para eles e os convida a abandonar esse lugar perfeito.

Esta passagem está na base do que conhecemos como pecado original, que pode ser sintetizada na desobediência dos primeiros seres humanos. Como dizemos, no passado, estas passagens foram lidas e interpretadas ao pé da letra como se Adão e Eva fossem mesmo personagens históricos. Ficamos sabendo que são narrativas, personagens fictícios que serviram para explicar uma verdade de origem.

Esta narrativa terá sido contada por algum sábio judeu ao redor do fogo, procurando explicar a realidade da sua época. Por que é que sofremos neste deserto, na intempérie da vida? Por que é que devemos trabalhar tanto e não nasce nada nesta terra árida?, por que é que a nossas mulheres gritam de dor no momento de dar à luz e até mesmo algumas chegam a morrer no parto? Diante dessas e outras perguntas, alguém da comunidade, um sábio, provavelmente, um homem inspirado por Deus, deve ter narrado essa historia que chegou até nós. A causa dos nossos sofrimentos deve-se ao pecado dos nossos primeiros pais. Eles viveram num lugar maravilhoso (paraíso, um jardim), mas foram maus, desobedeceram às leis do Senhor e todos nós estamos pagando as consequências.

Mas como aconteceu isso?

Deus tinha criado tudo, criou o homem e a mulher e os colocou como jardineiros e lhes proibiu que comessem de certa árvore, mas chegou uma serpente que convenceu a mulher e ela comeu e deu ao seu marido, que também comeu e Deus os expulsou do paraíso. Esta história narrada oralmente, repetida tantas vezes, enriquecida, procura compreender a realidade desse povo do deserto, a realidade dura de dor, da terra seca, da falta de água, de um lugar digno onde morar. Naquele tempo explicava bem a situação do povo. “Sofremos porque nossos pais foram infiéis”, uma resposta que com certeza era suficiente para aquela época.
Essa verdade chegou até nós, cristãos, e esteve na base da nossa fé. Aquele “pecado” cometido pelos nossos primeiros pais chegou até nós e foi preciso que viesse o Filho de Deus para curar as nossas enfermidades, para nos lavar dessa mancha eterna. Então, você pode perguntar, mas como se essa narrativa é alegórica, por que o Filho de Deus tinha que vir para nos salvar? Qual é ou qual foi esse “pecado” tão grave que exigiu que Deus mesmo viesse do Céu para nos salvar?

Essa pergunta é lícita, outros até mesmo perguntaram, indo mais longe, que se, Adão e Eva são umas figuras literárias, será que Jesus Cristo também não seria apenas uma figura literária? (Percebe-se deste modo a gravidade de pretender fundamentar a vinda de Jesus em uma alegoria linguística).

Naturalmente a pergunta está mal formulada, pois a questão não é Jesus, mas ter colocado como motivo da sua vinda ao mundo o perdão dos pecados, entre eles o pecado original. Mas então, você poderá dizer, se Jesus não veio como um tira-manchas (antigamente se dizia que cada criança que nasce vem com a “mancha” do pecado original), veio por quê e para que? E chegamos deste modo ao coração da nossa preocupação, isto é, a necessidade da releitura, da ressignificação – a minha resposta rápida, que vamos aprofundar depois, seria aquela dada pelo Concílio Vaticano II: Jesus veio ao mundo porque nos ama! O seu amor é englobante, inclui também o perdão; sem dúvida o amor é um motivo suficiente! (O motivo da vinda de Jesus ao mundo não foi apenas para tirar uma mancha que herdamos, mas Ele veio para nos mostrar com as suas palavras e a sua vida como é o nosso Pai. É como se quisesse nos dizer com a sua vinda que devemos procurar viver melhor, procurar o que nos faz bem, o que nos torna dignos e dignas filhos e filhas de Deus).

A leitura literal da Bíblia levou a consequências muito sérias como a “culpa maior” dada à mulher pela desgraça recebida como castigo da expulsão do paraíso; também a percepção negativa do mundo como um “vale de lágrimas” do qual devemos escapar; a horrível concepção de que a hereditariedade do mal passa de pais para filhos (será que não seria melhor dizer que a herança que todos os pais desejam passar para os seus filhos é o amor e não a maldade de uma marca?); também ficamos com uma visão negativa da sexualidade, vista por muito tempo como fonte de concupiscência, de maldade, de tentação etc.

Mas o que todos estamos nos perguntando naturalmente é sobre como fica o famoso pecado original.

Pois bem, a Igreja Católica ficou em paz com essa questão durante toda a Idade Média, mas chegada a Modernidade as questões já não podiam ser evitadas. E a melhor resposta que ela deu até agora foi com o Concílio Vaticano II.

Para chegarmos até este Concílio vamos ter que fazer um longo percurso. Comecemos pela própria Sagrada Escritura. Sabemos que o Primeiro Testamento não é nosso; ele não é cristão, ele pertence totalmente ao povo judeu, embora nós, cristãos, o tenhamos tomado emprestado, fizemos dele também o nosso livro sagrado. O que fizemos foi ler esse maravilhoso livro com a luz de Jesus Cristo.

Todas as verdades contidas no Primeiro Testamento, as interpretamos a partir da Boa Nova, do Emanuel, do Deus-conosco. Por exemplo, a interpretação feita pelos judeus da expulsão do paraíso é diferente da nossa, eles não a entendem como uma herança que todo ser humano deve carregar ao longo da sua história. Para o judaísmo o pecado é um ato de liberdade,  não uma herança.

Quero dizer com isto que o pecado original foi uma interpretação exclusiva do cristianismo das primeiras páginas do livro do Gênesis. O primeiro a fazê-lo foi o apóstolo Paulo. “Pelo velho Adão entrou o pecado no mundo e pelo novo Adão nos chegou a cura”. Podemos ver com clareza que a inteção de São Paulo não é falar de Adão, mas de apresentar coerentemente Jesus Cristo como aquele que é capaz de curar, purificar, limpar de todo pecado. Infelizmente a interpretação literal levou a consequências que já falamos acima.

(Vamos continuar na próxima postagem).

* A segunda imagem pertence ao artista brasileiro Cláudio Souza.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

A BASE DA NOSSA FÉ


Nas reflexões anteriores percebemos que o cristão de fé não pode abrir mão da contribuição da ciência. A fé cristã assegura que o ser humano é obra da ação amorosa de Deus e espera que a ciência possa aprofundar as suas buscas para compreendermos ainda melhor o que somos. Eis, por tanto, a primeira base da fé cristã: o ser humano é obra do amor de Deus. Esta é uma base angular para compreendermos a nossa fé. Percebemos também que a teologia se viu na necessidade de reformular as conclusões tiradas dos primeiros capítulos do livro do Gênesis, uma vez que elas têm uma linguagem figurada e verdades de fé tão importantes como o pecado original não podem se fundamentar sobre linguagem figurada (para compreender melhor isto será preciso rever as postagens anteriores). 

A percepção de que o Primeiro Testamento serviu-se, em grande parte da linguagem figurada, levou a teologia a uma crise profunda e à necessidade de releitura, de ressignificação. Podemos dizer, simplificando sempre, que os Concílios modernos foram tentativas de releituras e ressignificações.

Para compreendermos a questão vou exemplificar, de um modo bem simples, correndo o risco de ser superficial. A catequese católica funcionou de um modo maravilhoso durante séculos, seguindo um esquema simplificado e por isso muito claro. Eis o esquema: o ser humano pecou, foi desobediente, por isso foi castigado, expulso do paraíso, carregando a culpa, que vai passando de geração a geração  através dos filhos, vivendo eternamente no vale de lágrimas, que é o mundo, lugar de maldade e de sofrimento. Sendo esta a problemática da condição humana, como solucioná-la? Apresentando alguém que é capaz de lavar, de limpar, de purificar: o Salvador, Jesus Cristo. Pronto!, temos o problema e a solução. Como funcionou isso na prática? Com um processo muito claro e simples que começava com o batismo das crianças, que significava lavar do pecado, da mancha original; depois seguindo umas indicações que assegurariam ao ser humano chegar limpinho ao paraíso perdido. Todos os sacramentos foram colocados com essa finalidade, confissão, primeira comunhão, crisma etc., tinham a finalidade de mostrar o caminho do bem e da salvação. 

Então vem alguém (a crítica literária, por exemplo) e fala para nós que essas  verdades caíram porque a mesa onde estavam depositadas ruiu, em outras palavras, esse esquema tradicional sofreu um golpe terrível, pois os estudiosos nos informaram que as bases dessas verdades foram colocadas sobre frágeis linguagens figuradas. Literalmente a mesa caiu! Muitos diziam que era o fim da religião, que nada, precisamos reconstruir a mesa, então mãos às obras! 

Devemos dizer que esse esquema utilizado pela Igreja por séculos: pecado, culpa = salvador, solução, serviu como catequese, foi útil e ajudou muita gente a viver uma vida tranquila, confiante, bastava seguir tudo direitinho, a consciência ficava em paz e a vida ganhava sentido, não precisavam de mais nada. Hoje as necessidades são muitas, e esse esquema não nos serve mais. (O Concílio Vaticano II que aconteceu em 1962-1965 foi claramente uma tentativa de responder a essas questões, o Concílio buscou responder ao mundo moderno, buscou reler as verdades de fé, abrindo caminho para que a teologia procurasse aprofundar e apresentar ao mundo cristão uma catequese conforme a sua maturidade). 

Não se trata de culpar a Igreja e dizer, por exemplo, “onde é que já se viu a Igreja enganando as pessoas”; não, isso seria injusto com a Igreja, Ela era uma instituição do seu tempo, tinha as carências do seu tempo, as pessoas não sabiam ler, a maioria jamais vira a Sagrada Escritura na sua vida, e aquela catequese esquemática serviu e foi suficiente. Se a Igreja hoje insistisse nessa catequese ultrapassada aí sim deveríamos criticar, pois hoje todos têm possibilidades de estudar, de aprofundar e fazer isso como honestidade e transparência. Insistir hoje no jeito de ser igreja como na época de Trento não passa de atraso ou no mínimo de saudosismo. Temos que olhar para frente e ter a coragem de aprofundar a nossa fé como pessoas adultas; tenho certeza que isto se consegue com formação, com leituras, com uma cabeça aberta e jamais com preconceitos, com leituras de um livro só. 

Não devemos jamais compactuar com o modo equivocado que a Igreja teve no passado de apresentar a fé aos povos; mas também não podemos pretender sermos juízes e condená-la sem conhecermos bem o contexto no qual ela se viu obrigada a apresentar a sua mensagem. Hoje facilmente condenamos o desrespeito que houve com as culturas nativas, a negação das religiões dessas pessoas, a demonização de todos aqueles e aquelas que não aceitavam o cristianismo, o quase silêncio diante da escravização dos africanos, as diversas cruzadas etc., e não lembramos o outro lado, milhares de profetas que em nome de Jesus deram a vida para defender os mais humildes, os mais fracos. Devemos ser maduros o suficiente para aceitar que as coisas boas não justificam os erros passados, mas condenar sem um senso crítico significa apenas repetir os erros do passado. Houve erros, muitos erros, mas também houve profetismo e defesa dos mais desvalidos. 

A igreja pediu perdão publicamente contra alguns desses erros, tomara que algum dia alguma instituição reconheça que o cristianismo também trouxe coisas boas para a civilização ocidental, e que sem ele, esta não seria compreensível. 

Dito isto, podemos começar desde o princípio. Iniciemos com a questão do pecado original. Dizemos que ele foi a base da fé cristã, pelo menos na justificação apresentada na catequese e que serviu por séculos. (Lembre-se do esquema: os seres humanos são pecadores, já nascem com essa marca, por isso Jesus veio, para salvar, limpar, purificar). Dizemos que grande parte do livro do Gênesis utilizou a linguagem alegórica, isto é, o livro quis apresentar “verdades de fé” com uma linguagem compreensível para a sua época. A Sagrada Escritura fala dessa verdade narrando a história dos primeiros seres humanos: Adão e Eva. 

É preciso relembrar essa narrativa que encontramos no livro do Gênesis (Gn 2, 16-17. 3, 1-24).



(Na próxima postagem damos continuidade ao tema)


*(Fotos do autor)

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

O SER HUMANO (III)

O cristão não pode ter medo da ciência, não deveria vê-la como ameaça para a sua fé, não pode mais deixar passar a oportunidade de aprender e de crescer como ser humano com as ciências. Essa foi a mensagem da Igreja quando afirmou em 1950 que a evolução é plausível, aceitável como hipótese; o Papa Pio XII publicou uma Encíclica chamada Humani Generis, na qual incentiva os católicos a pesquisar; depois em 1992 o Papa João Paulo II ratificou esta visão um pouco mais aberta com relação à ciência. O que ninguém deve confundir com isto é a fé cristã que afirma que Deus é o Senhor da Vida, esta é a fé que nos vem desde o testemunho bíblico do Primeiro Testamento.

A Igreja, nas últimas décadas, incentivou a não ter preconceitos em relação à ciência, uma atitude digna, naturalmente; uma atitude de abertura para o diálogo. Isto significa um passo importante, porém demoramos demais, pois sempre nos julgamos como donos da verdade absoluta e ensinamos as pessoas a desconfiar da ciência como aquela que vai destruir o mundo e a fé. Ultimamente percebemos que vamos caminhando para a mesma direção, que seria melhor unir os esforços para tentarmos compreender um pouco mais o enigma humano, do que ficar eternamente num enfrentamento estéril. Parece que a Igreja Católica aprendeu finalmente a olhar a ciência com respeito e a vê-la como parceira. Isto é um belo sinal de maturidade.

Do lado da ciência o preconceito não foi diferente. A religião foi vista como um “antro de ignorância”, de obscurantismo, de atraso, que teria levado milhares de pessoas à morte. Este preconceito tem a sua raiz na filosofia, com aqueles pensadores que afirmaram que não iam mais aceitar como verdade o que não fosse evidente, para isso inventaram um “aparelho”, a razão como se fosse instrumento que pudesse pesar, medir, classificar, evidenciar a verdade. Simplificando ao máximo o que estou dizendo, esses pensadores começaram a aceitar como verdade somente o que poderia ser demonstrado pela razão. Em outras palavras, tudo o que pudesse ser medido pela razão, o que passasse pela sua triagem, poderia ser considerada verdade. E, consequentemente, tudo o que não passar por esse “instrumento” deveria ser visto como “mentira” ou, no mínimo como “suspeito de falsidade”. Desse modo, a fé, a religião, a teologia, foram vistas com desconfiança, e os mais radicais as classificaram como “conversa fiada”.

Percebemos, deste modo, que tanto a religião como a ciência, têm os seus preconceitos. A religião não pode ser tão arrogante para pretender ser a dona da verdade; mas também a ciência não pode ser tão arrogante para dizer que apenas os seus métodos serão capazes de explicar tudo. A religião não pode ser extremista e descartar os outros saberes, pois fatalmente estaria se empobrecendo; a ciência também não pode pretender jogar no lixo saberes milenares, realidades humanas que são importantes, apenas porque não se enquadram no padrão dos seus métodos. Uma religião sem a razão, pode se tornar uma religião irracional e uma ciência sem as riquezas humanas pode pretender se endeusar.

As consequências destas atitudes na história não podem ser ignoradas, bastará dar uma olhada honesta e aceitar que tanto as religiões como as ciências colaboraram para que a humanidade progredisse, mas ao mesmo tempo, foram utilizadas ideologicamente levando ao mal-uso das mesmas, cujos resultados foram máquinas de extermínios, campos de concentração, bombas atômicas etc. etc., do lado da ciência; culturas dizimadas, caças às bruxas, cruzadas em nome de Deus etc. etc., em nome das religiões. Mas, ao mesmo tempo, as religiões foram oásis de alegria e de esperança, sentido de vida, motivos para ver os outros como irmãos, razão para seguir na luta pela justiça, pelo bem, a certeza de que a misericórdia é mais forte do que o mal e do que o ódio. Assim como as ciências que propiciaram uma vida mais confortável a través da saúde e da medicina, tornaram o mundo menor pelos meios de transportes e de comunicações, todas as maravilhas que usufruímos diariamente são produtos da inventiva humana, da capacidade de produzir e propiciar uma vida melhor para todos.

Todas as religiões surgiram a partir de uma experiência extraordinária com Deus e se apresentaram como caminhos para o crescimento para esta humanidade que está à caminho. O judaísmo nasceu no deserto, a partir da consciência e percepção da existência de um Deus que era Libertador, que tirou o seu povo da escravidão, cuja celebração é a páscoa, a passagem do cativeiro para a libertação. Mas esta religião também serviu para oprimir os povos vizinhos, para matar e expulsar pessoas da sua terra (veja que essa religião tão bonita tornou-se instrumento de maldade nas mãos daqueles que a utilizaram erradamente). O cristianismo surgiu a partir da experiência concreta de Jesus Cristo, o Filho de Deus, que foi assassinado e ressuscitou, cujo ensinamento consistia no amor ao próximo, na prática da justiça e na misericórdia. Mas esta religião foi deturpada e utilizada para oprimir os povos (“todos aqueles que não se batizam irão para o inferno!”), o batismo ou a espada, o que você prefere? O batismo naturalmente! (Veja que esta religião tão bonita tornou-se instrumento de maldade nas mãos daqueles que a utilizaram erradamente). O islã nasceu da experiência de um homem, o profeta, Maomé, que recebeu de Deus Alá as instruções para uma vida limpa e honesta de amor e de misericórdia, mas foi deturpada pelos homens que a utilizaram para invadir povos, assassinar, fazer guerra em nome de Alá. (Veja que essa religião tão bonita tornou-se instrumento de maldade nas mãos daqueles que a utilizaram erradamente).

É possível afirmar, deste modo, que as religiões nasceram boas, mas quando são instrumentalizadas negam os seus princípios fundamentais. Não cabem dúvidas de que essa incoerência foi e segue sendo um dos motivos de desconfiança das pessoas com relação às religiões. Elas deveriam ser testemunhas do amor de Deus pelas suas criaturas, mas testemunham divisões, ódios, mentiras, manipulações.

Permanecendo dentro da nossa cozinha, isto é, dentro do cristianismo podemos perceber muitas incoerências por parte dos homens religiosos, não apenas no mundo católico, mas em todas as denominações cristãs que se multiplicaram como cogumelos, cada um oferecendo Deus como se fosse mercadoria, quem pagar mais, leva. Uma verdadeira pena, um contratestemunho do Deus que antes de tudo é Amor, Justiça e Misericórdia.

(Continuaremos na próxima postagem)

* A segunda imagem "Sacrifício de Isaac" é de Caravaggio.