Quando uma
catequista perguntar às crianças da catequese sobre o motivo da vinda de Jesus
ao mundo a resposta que ouvirá será “Para nos salvar dos nossos pecados”. Não é
uma resposta errada, mas terrivelmente incompleta. Com certeza esta “quase
convicção” da importância que tem o pecado para a vinda do Filho de Deus ao
mundo, é resquício da opção teológica primeira, cuja consequência evidente é a
visão extremamente negativa que temos da pessoa (pessimismo antropológico). O ser humano é um pecador
(sabemos que é uma verdade, a aceitamos como verdade, embora a maioria das
pessoas não se pergunte sobre o significado do ser pecador).
Sendo o ser humano
pecador, marcado desde o seu nascimento pela “mancha” do pecado original,
vivendo numa sociedade corrupta, devassa, injusta, a vinda de Jesus Cristo é
uma boa resposta para limpar tudo isso. Mas acontece que Ele veio há dos mil
anos atrás e o ser humano continua sendo marcado pelo pecado e continua vivendo
numa sociedade com aquelas mesmas características. Terá falhado a vinda e a
missão de Jesus Cristo? Se acreditarmos que Jesus veio, antes de tudo, para
limpar nossos pecados podemos dizer que Ele deve sentir-se fracassado. Onde estará
o problema? Na encarnação do Filho de Deus? Não, o problema está na
interpretação equivocada que fizemos. Esta confusão começou com a leitura equivocada
dos primeiros capítulos do Gênesis.
A história de
Adão e Eva pertence ao mundo da linguagem alegórica, por isso não pode ser
considerada literalmente. Ter fundamentado sobre essa história alegórica algo
tão importante como a condição pecadora do ser humano ainda rende
mal-entendidos até os nossos dias. Uma linguagem alegórica pode e deve ser
interpretada para colher-lhe a sua riqueza e jamais utilizá-la literalmente. O
uso literal da Escritura geralmente leva ao fanatismo.
A desobediência
de Adão e Eva merece ser mais bem interpretada, pois sem dúvida, expressa uma
verdade importante, assim como as outras passagens do livro do Gênesis. Desde
as duas histórias da criação que encontramos nos primeiros capítulos do
Gênesis; a desobediência e expulsão do paraíso de Adão e Eva; a história de
Caim e Abel; o dilúvio e a história de Noé; a nova humanidade a partir dos
descendentes de Noé e a história da Torre de Babel. Todas estas histórias têm
uma intensão instrutiva, explicativa para o povo judeu. Essas pessoas jamais
perguntaram se tudo aquilo aconteceu de fato, mas com certeza perguntaram sobre
o significado dessas narrações.
A interpretação
literal seria terrível, pois nos levaria a uma compreensão aterrorizante de
Deus. Imaginem a Deus criando um jardim onde tudo era belo e bom, mas proíbe de
comer de um fruto. Será que Deus era bobo para não conhecer o coração da sua
criação? (Alguns costumam dizer: Deus fez isso para pôr à prova Adão e Eva.
Quem costuma colocar à prova somos nós, as pessoas, pois não sabemos amar).
Deus sabia muito bem que Adão e Eva comeriam daquele fruto; parece que Deus estava
brincando de esconde-esconde com eles, mas as consequências dessa “brincadeira”
é terrível, expulsão e viver na dor pelo resto da vida.
Na história de
Caim e Abel, vemos Deus rejeitar uma oferenda e aceitar outra. Será que Deus é
tão duro para rejeitar a oferenda de um ser humano e aceitar a do outro com
agrado? Que Deus seria esse que faz distinções entre os seus filhos (Nem as
mães, que são humanas, fazem isso).
A história do
dilúvio é ainda pior se a considerarmos literalmente; Deus decide acabar com o
mundo, decide matar por causa da maldade humana; mas será que Deus não poderia
perdoar os seus filhos? Esse gesto de afogar todo mundo assemelha-se muito mais
à ira dos homens do que ao rosto bondoso de um Deus criador.
Depois daquela
mortandade provocada por Deus surge uma nova humanidade (o que no fim não será
melhor que a primeira, pois têm maldade, roubos, assassinatos, corrupção), terá
valido a pena ter acabado com toda uma geração? Terá falhado a intenção de Deus?
Finalmente temos a história da Torre de Babel. Os homens construíram uma Torre
desejando chegar até Deus, mas Ele não gostou da ideia e destrói o projeto,
dividindo os homens em diversas línguas, que depois da confusão, cada grupo
separou-se e foram procurar um lugar para viver (como se Deus gostasse da
divisão).
Quero dizer com
isto que costumamos aceitar com facilidade algumas destas histórias como
alegorias e outras, porém, interpretamos ao pé da letra. Todas estas histórias
devem ser interpretadas como alegorias. Devemos perguntar sobre o sentido que
teve para o povo judeu. Sempre será equívoco perguntar se aconteceram de fato
ou não, pois isso seria trair a intenção da Sagrada Escritura, cuja preocupação
é oferecer sentido e não concretamente história fatual (de fato).
Dito isto, temos
que aceitar que a história de Adão e Eva tem uma intenção, tem um sentido que,
naquele tempo, o povo judeu, compreendeu e o ajudou a viver melhor.
Para colhermos o
sentido de uma narrativa alegórica precisamos interpretar. Depois de compreenderem
isso, os teólogos católicos, especialmente os biblistas, começaram a procurar o
sentido da narrativa de Adão e Eva. A conclusão é que essa narrativa refere-se
a uma verdade humana, a uma condição da realidade.
Em síntese, o
ser humano desde que nasce está pronto para o “pecado”, para a realidade
ambígua do mundo. O mundo não pode ser visto apenas como o lugar do mal, do
pecado, pois também é lugar do bem, do amor, da graça. As atitudes livres, as
opções livres que fazemos podem ter consequências boas ou más.
O pecado
original é a condição do ser humano que está pronto para realidade total do
mundo, ele pode assumir na sua vida o caminho que lhe fará viver melhor, como
ser humano, como imagem e semelhança de Deus, mas o que acontece frequentemente
na prática é que não costumamos escolher o caminho que nos fará viver, mas o
caminho que nos faz sofrer, que produz sofrimento, embora almejemos viver uma
vida serena e boa com a dignidade humana intacta.
A realidade
humana tem algumas características comuns. Por exemplo, se você tem que
trabalhar oito horas, você trabalharia dez horas sem receber mais por isso
(claro que não!). Você carregaria uma mochila com vinte quilos se pudesse
carregar apenas uma de dez (claro que não!). Você caminharia quinze quilômetros
se a meta fosse caminhar apenas oito quilômetros (claro que não!). A primeira
característica que ninguém de nós escapa é esta realidade do “menor esforço”.
Este é o primeiro mandamento que todos nós obedecemos sem protestar.
O pecado
original pode ser comparado a uma atração para o “menor esforço”, uma procura egoísta
de conveniência pessoal. É uma marca que trazemos desde que nascemos.
Essa realidade
se torna terrível quando os exemplos vão crescendo em importância. Você seria
honesto se, na política, lhe oferecessem uma mala com cem mil reais por uma
assinatura para favorecer um projeto (está ficando difícil!). Você seria fiel à
sua esposa ou ao seu esposo, caso aparecesse uma pessoa encantadora na sua vida
e lhe oferecesse o que você sempre sonhou (e agora!). Os exemplos podem ir
crescendo, mas o mais importante é percebermos que todos nós podemos ceder à
lei do “menor esforço”.
Essa comparação
nos ajuda a compreender que o pecado original é uma realidade que carregamos,
que faz parte do que somos, é a possibilidade da ambiguidade no mundo.
Quando os judeus
ouviram a história de Adão e Eva, compreenderam imediatamente que uma parte do
povo estava se entregando à vida fácil, à lei do menor esforço.
(Vamos
ver isso na próxima postagem)
* A primeira imagem é de Michelangelo.
Que salutar toda a sua reflexão sobre o pecado original, Oscar. Compreender que esse pecado corresponde a um "menor esforço",ao egoísmo e entrega à vida fácil,traz esperança, libertação a quem outrora se aprisionou a "falsas verdades" de um peso imposto. Muito agradecida! Abraços!!!
ResponderExcluirObrigado Carla, uma compreensão madura da nossa fé nos leva a uma liberdade interior maior para assumirmos a vida, em todas as suas dimensões com responsabilidade. Abraço.
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