terça-feira, 9 de dezembro de 2014

O SORRISO DE DEUS


Entre as tantas qualidades que nos diferenciam dos animais está a nossa capacidade de sorrir. Nenhum animal consegue sorrir, embora alguns deles gostem de brincar, mas não conseguem sorrir. O sorriso é uma exclusividade humana, é uma expressão da interioridade, do estado espiritual. O riso autêntico, aquele espontâneo, expressa o estado emocional, a alegria, o contentamento, a felicidade. O riso mostra o lado gracioso do coração humano.

Na Teologia Medieval havia, entre outras discussões, que hoje nos parecem anacrônicas, a pergunta sobre se Deus poderia ou não sorrir. E a resposta que prevaleceu por séculos afirmava que era impossível que Deus sorrisse.

O escritor italiano Umberto Eco no seu livro “O nome da Rosa”, que depois virou filme, coloca como centro temático a questão do riso. Num tradicional mosteiro, misteriosamente começam a morrer alguns monges cuja causa deve ser revelada por um enviado para investigar o caso. A resposta para o enigma está no centro da biblioteca do mosteiro, num livro grosso, cujas folhas foram envenenadas.

A resposta surpreendente está justamente nesse livro. Por que alguém iria envenenar as páginas de um livro? O que tinha esse livro de especial? O livro era de piadas, que os monges descobriram e iam escondidos de noite para lê-lo e “matar-se” de dar risadas.

A ideia do livro de Umberto Eco expressa brilhantemente como era a compreensão que se tinha de Deus. (Com certeza Alguém muito sério que desconfiava de todos aqueles que sorriam na calada da noite conventual). Um Deus sério, um Deus incapaz de sorrir, que não gosta de gente que ri à toa. (Hoje sabemos que gente que se leva muito à sério deve sofrer algum tipo de problema de autoestima).

Desde criança aprendemos que a Igreja é um lugar muito sério, porque “Deus é muito sério”, parece que Ele não gosta muito de crianças, de risadas, de pessoas falando. Na igreja todo o mundo deve ficar quieto, com a cabeça baixa, e nem pensar em sorrir. Isto é um equivoco que provêm da ideia de que Deus somente pode morar na perfeição das coisas estáticas, nas coisas que não se movem, nas coisas perfeitas. Seriedade + perfeição = Deus.

Graças ao mesmo Deus, com a ajuda da própria teologia e de outras ciências fomos valorizando tudo o que tem a ver com a nossa vida. Deus é vida, Deus é alegria, Deus é sorriso, por isso a igreja deve ser o lugar da vida, da alegria e do sorriso.

A igreja não é um teatro onde cada ator deve representar o seu papel, e o público que chega, senta no seu lugar e assiste em silêncio respeitoso (sem ligar o celular) ao espetáculo. A igreja não é um teatro, ela é o lugar da vida, é a casa da nossa vida.

Por isso a igreja não pode ser um mercado onde todo mundo fala, grita e ninguém se entende, a igreja não pode ser o lugar de um show, onde os cantores imitam os astros da televisão. A igreja é lugar da vida, mas daquela vida familiar, tranquila, com espaço para o encontro com os irmãos, de diálogo, lugar para o sorriso, para o silêncio, para o respeito, para a reflexão e especialmente para o diálogo íntimo com Deus.

Tudo o que é exagerado atrapalha. Seriedade demais deve espantar até mesmo a Deus. Mas bagunça demais também não ajuda em nada. Na igreja, assim como numa casa, o equilíbrio é fundamental. Uma casa séria demais deve ser muito chata, mas uma casa onde somente tem música a todo volume deve ser horrível.

Mas será que Deus gosta mesmo de sorrir? Naturalmente estamos lidando com uma imagem humana, nós sorrimos, nós gostamos de sorrir, até mesmo contamos piadas com a única finalidade do riso. Não sabemos se Deus sorri como a gente, e não creio que tenha importância a questão. Agora, o que é fundamental é reconhecer que Deus expressa muito bem o que sentimos quando sorrimos.

Quem é mãe ou pai sabe o significado de um sorriso transparente. O pai e a mãe experimentam uma alegria única quando carregam os seus filhos em seus braços e não é preciso prestar muita atenção para perceber como o coração deles transborda de alegria. Os seus lábios não se cansam de mostrar esse contentamento.

O sorriso de Deus expressa-se nessa imagem do menino que veio ao mundo. O sorriso de Deus é a alegria de uma criança que nasceu entre nós. “Envio o meu Filho ao mundo porque amo cada um de vocês, meus filhos, porque amo o mundo, porque Eu sou o Amor, porque Eu sou a alegria, porque eu sou a beleza da gratuidade”. Com outras palavras, São João, testemunha esta verdade.

A imagem de Deus que tenho é a de um Pai que tem nos braços o seu Filho, em cujo rosto resplandece o amor da gratuidade.

O sorriso de Deus é o Natal. É a Boa Notícia de que somos amados por Ele: “Deus amou tanto o mundo que enviou o seu próprio Filho”. O Natal, desse modo, é sempre um lembrete do Amor divino. Só que é um Amor oferecido que precisa ser aceito para que produza os frutos concretos, que devem ser mais Amor e mais gratuidade.

É muito fácil, porém, dizer que Deus nos ama ou que amamos a Deus, isto pode não passar de uma ideia que repetimos sem tomarmos consciência da sua importância e das suas consequências. Terá algum valor ser amado por Deus se eu sou incapaz de amar o meu próximo? Terá algum valor afirmar que Amo a Deus quando sou intratável e mal educado com o meu próximo?

O sorriso de Deus que é o Natal deve ser uma festa assumida na vida, que deve tornar a nossa vida mais alegre e gratuita. O amor deve nos tornar mais humanos, mais fraternos, menos arrogantes e mais sábios. (O Natal é um caminho que deve ser percorrido diariamente, não é mesmo?).

Com esta última postagem deste ano, desejo a você e a sua família, Feliz Natal, que a Graça do Sorriso Luminoso de Deus (que é o seu Filho entre nós) ilumine e contagie de alegria e felicidade a nossa vida. 

Boas Festas e realizações para 2015!

*Imagens: Internet.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

SER LIVRE DIANTE DE DEUS


As religiões nem sempre foram caminhos de autonomia para o ser humano. Infelizmente foram muito mais caminho de heteronomia e de violência. (Autonomia significa algo que se move por si mesmo, que anda com as suas próprias pernas. Heteronomia significa que para andar precisa ser empurrado, alguém tem que empurrar). E você como cristão é autônomo ou heterônomo?

Os críticos das religiões têm razão na hora de criticar que na história da humanidade as religiões serviram muito mais como opressão, de violência e de heteronomia do que realização do bem e da justiça.

As três religiões monoteístas: Judaísmo, Cristianismo e o Islamismo têm nas suas histórias momentos cruéis, nenhuma delas é limpa e imaculada; ao contrário, infelizmente cada uma delas têm manchas terríveis na sua história. Os judeus foram cruéis em nome de Javé ao invadir a terra que era de outros povos. Os cristãos foram cruéis em nome de Cristo ao conquistar povos e justificar até mesmo a escravidão. O islamismo continua sendo utilizado de modo extremista até hoje. São apenas exemplos de que nenhuma dessas três religiões monoteístas encontra-se limpa. Não se trata tampouco de dizer qual delas cometeu maior mal no mundo (aqui entre nós, creio que os bancos e os governos corruptos fizeram muito mais mal no mundo do que essas três religiões juntas).

Não vou fazer aqui uma crítica gratuita às religiões, a única intenção aqui é a formação, pois o saber, o conhecer, pode nos ajudar no momento de amarmos mais.

O que devemos nos perguntar é se as religiões são mesmo caminho de maldade em si mesma ou não. A resposta deve ser não, pois como é que podemos seguir uma religião sabendo que ela faz mal às pessoas? Vamos procurar fundamentar a nossa resposta.

A religião para ser autêntica deve ser caminho de liberdade, deve ser caminho de autonomia e não de opressão ou de heteronomia. Ninguém gosta de ser empurrado ou levado aos lugares que não quer ir. Todos desejamos a liberdade para decidir o que será melhor para nós.

Acontece que todas as religiões são humanas como expressão. Nenhuma dessas três religiões caíram prontas do céu. A organização delas é totalmente humana. Todas as religiões como linguagem são humanas. Quando entramos no âmbito da fé, falamos que a nossa religião nasceu de uma inspiração divina. Assim afirmam os judeus, nós, cristãos, e também os muçulmanos.

Ficando na nossa religião, nós afirmamos que Jesus Cristo é o Filho de Deus, esta é a base divina da nossa religião. O que precisa de um ato de fé, ou seja, existem pessoas que não vão aceitar isto e dirão que Jesus não passava de um homem, que era apenas um homem qualquer. Mas para nós, que temos fé, Ele é o Filho de Deus, o Deus encarnado, Aquele que venceu a morte e continua vivo no meio de nós. Repito, esta verdade pertence ao mundo da fé, ao mundo do “eu creio” e do “nós cremos”.

Nós fundamentamos a nossa fé na experiência dos primeiros cristãos, portanto, na fé de homens e mulheres que conheceram Jesus, que viveram com Ele e que foram testemunhas privilegiadas. Essas primeiras experiências com o Senhor foram escritas e estão contidas no livro que conhecemos como Novo Testamento. Esse livro para nós é um livro sagrado, pois guarda as experiências sagradas dessas pessoas. (Entendamos aqui sagrado não como algo que está fora de nós, mas algo que é muito caro para a gente, que amamos demais, que é muito importante para nós. Alguns afirmam que a mãe é sagrada, que a família é sagrada, que a esposa é sagrada, que a namorada é sagrada, que a cama do casal é sagrada etc).

A fé das pessoas sempre é sagrada, mesmo que a pessoa acredite muito mais num pedaço de gesso do que no amor misericordioso do Pai. Essa fé é sagrada e merece respeito sempre. Pois a fé faz parte do nosso santuário pessoal, daquela intimidade que ninguém mais conhece, somente você e Deus. A fé mora ali, no mesmo lugar onde mora o amor, a amizade, a gratuidade, o bem, o gosto pela beleza, pela justiça, o desejo de ser mais, de ser feliz, de não errar tanto. Esse é o santuário de cada um, ali mora a fé, por isso a fé merece respeito sempre, mesmo que seja uma fé ingênua e simples. O que não significa que não devamos procurar amadurecer a nossa fé. Ninguém deve se contentar com apenas rezar o terço, ou fazer caminhadas nas procissões, fazer promessas, rezar pulando (tudo isto pode ser importante), mas somos convidados a caminhar sempre, a buscar a intimidade, a profundidade na nossa relação com Deus.

Na base da nossa fé está a experiência divina de um Deus que por amor enviou o seu Filho ao mundo. Como organização, a religião é totalmente humana, é histórica, precisa da cultura, dos costumes para se expressar. Assim podemos dizer que a religião nasce sempre como expressão de Amor de Deus, mas na hora de colocarmos isso em prática, quase sempre falhamos, pois a nossa parte é falível.

A religião para ser autêntica deve ser como uma mão estendida ao crente no caminho da liberdade e na saudável relação filial com Deus. Isto é, a religião deve ajudar o crente a caminhar confiante em Deus, a igreja deve ser um lugar privilegiado desta aprendizagem. A comunidade deve ser especialista em ajudar as pessoas a confiar mais em Deus do que em normas. A religião deve ser liberdade e não medo, deve ser confiança em Deus e não ameaças.

Quem é que não gosta de caminhar com os próprios pés? Pois Jesus veio justamente para nos ajudar neste caminho de liberdade pessoal, que somente poderá ser plena como expressão desse amor construído no silêncio do encontro com Ele. É uma beleza ver cristãos livres diante da vida! Livres e responsáveis, que não temem diante dos irmãos e diante do Senhor não como expressão da sua arrogância, mas da sua confiança, que não precisam fingir o que não são, que não estão preocupados demais em agradar todo mundo porque sabem que o seu agir está pautado na palavra de Deus e não apenas em expectativas humanas.

Todas as religiões nasceram boas (o Concílio Vaticano II afirma timidamente que em cada uma delas habita a sementinha do Verbo). Infelizmente a organização dela, a parte humana, deixa muitas vezes a desejar, mas a boa notícia é que estamos caminhando, que estamos aprendendo. Não podemos mais repetir erros do passado. Graças a Deus, com o nosso atual Papa, voltamos devagarinho o nosso olhar à vida real das pessoas. É como se o Papa dissesse para cada cristão que ele não precisa deixar de ser o que é para ser cristão. É com certeza uma confiança inabalável em Deus, é confiar que é Deus quem conduz a nossa história. Ainda bem que Deus age misteriosamente na nossa história que chega a nos surpreender de tanto em tanto.

A religião hoje pode ser caminho de imaturidade, de dependência doentia e até mesmo de violência; mas ela também pode ser uma boa notícia que começa pela sua vida, que perpassa a vida da família, que chega até as nossas comunidades produzindo vida nova.

Sendo assim a religião é um lugar onde nos sentimos bem, porque é um espaço da nossa casa e não um lugar de medo, onde vamos cumprir com as nossas obrigações (Cansei de ouvir “vou a missa para cumprir com a minha obrigação de cristão”. Para um cristão maduro não pode existir obrigações, mas sim responsabilidade e atitudes de gratuidades que mostrem com gestos, palavras e vida o que de verdade acredita).

A liberdade diante de Deus é o primeiro sinal de maturidade religiosa. 


* Fontes das magens: Internet.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

MORTE E RESSURREIÇÃO

Domingo passado celebramos o dia dos finados, um bom dia para refletirmos sobre o seu significado para nós cristãos.

A morte, como uma realidade, deveria ser um fato natural como o próprio nascimento. Atualmente ela deixou de ser um fato familiar, motivo para encontros, momento de espiritualidade e vivência normal do luto. Hoje quase que temos vergonha da morte, sentimos como algo incômodo e por isso ela é escondida; alugam-se lugares especiais para o velório e quanto mais rápido for o enterro melhor. Infelizmente no mundo moderno não temos mais tempo para as coisas humanas importantes.

A morte infelizmente é o fim da vida neste mundo e nós que nos apegamos tanto à vida, que amamos viver, ficamos tristes com ela, por isso a morte jamais é bem-vinda. Lembro que costumava brincar dizendo que “algum dia a gente vai se encontrar no céu, pois temos essa esperança e nesse lugar encontraremos a plenitude, mas quanto mais tarde, melhor”.

Ninguém tem pressa de deixar este mundo. Nenhum cristão em sã consciência pode desejar a morte. É compreensível que num momento de desespero as pessoas se queixem dizendo que seria melhor morrer, mas depois que os percalços passam, a vida recupera toda a sua beleza e cresce o desejo de continuar vivendo.

Nós, cristãos católicos, fazemos uma confusão quando chega o dia dos finados. Repetimos uma frase bem inocente sem pensarmos no seu significado. “Vamos rezar pela alma de fulano”.

O que está na cabeça destas pessoas é que o ser humano se divide em duas partes: o corpo e a alma. Acreditam que quando alguém morre o corpo do falecido se destrói e a alma sai voando por aí. (Esta compreensão pertence à filosofia grega e não ao cristianismo. O filósofo Platão afirmava que o corpo é uma prisão para o ser humano, cuja libertação acontece com a morte).

O cristianismo tem uma visão totalmente diferente, pois ele não tem a sua base na filosofia grega, mas na sabedoria semita (ou seja, a sabedoria do povo do deserto, do povo da Bíblia).

O ser humano para o cristianismo é uma Unidade, não se divide em partes, corpo e alma, mas distingue dimensões que estão unidas, a dimensão corporal e espiritual. O ser humano para o cristianismo é Uno (unidade), não se divide em duas partes, por isso o cristão não pode dizer “tenho corpo ou tenho alma”, é mais coerente dizer “sou corpo, sou um ser espiritual”.

O cristianismo, em nome da missão evangelizadora, utilizou a filosofia grega como linguagem que, naquela época, era como o inglês de hoje (que devemos utilizar se quisermos ser compreendidos). O cristianismo utilizou a filosofia grega como a sua linguagem e as consequências foram desastrosas, pois quando se divide o ser humano em corpo e alma como os gregos, a tendência é menosprezar o corpo e supervalorizar a alma. Desse modo tivemos uma compreensão dualista da realidade humana (alma x corpo; bem x mal; claridade x escuridão; céus x mundo; branco x preto etc.).

De acordo com a compreensão dualista tudo o que pertence ao corpo é mundano, ruim, maldade, escuridão, pecado e condenação e tudo o que pertence à alma é bom, claridade, pertence à santidade e à salvação (por muito tempo para os católicos a santidade consistia em rejeitar as coisas do mundo e tudo relacionado ao corpo e abraçar tudo o que têm a ver com a alma).

Podemos perceber ainda hoje as consequências dessa compreensão na nossa espiritualidade, nas nossas pastorais e na nossa relação com o mundo e com a nossa própria corporeidade. Toda separação radical é terrível, quando vemos que por aqui somente têm capetas e no outro lado somente têm anjos, alguma coisa pode estar errada. (É fácil perceber essa ideia na política cuja disputa ainda está viva na memória. Nas propagandas, para o segundo turno, apresentavam claramente essas ideias. O outro partido é o caminho do mal e o meu partido é a salvação. Neste partido somente têm honestos e no outro, somente corruptos. Lutas terríveis entre “santos e demônios”. Seriamos ingênuos demais se acreditássemos nessas histórias inventadas para enganar os mais simples, pois a nossa experiência nos mostra que essas realidades fazem parte do coração humano e não de um determinado partido político).

A realidade humana é uma Unidade afirma o cristianismo, portanto o ser humano é Uno na Vida e é Uno na Morte. Quando uma pessoa morre, morre mesmo; não sai do seu corpo uma alma que estará pairando por aí. A morte humana é morte mesmo. É mais ou menos como se a porta da vida, neste mundo, tivesse se fechado. Acabou, agora é silêncio absoluto.

A esperança cristã abre esta mesma porta que se fechou para uma confiança plena. Nesta porta nos lançamos na confiança nos braços do nosso Pai que é Criador. A fé cristã afirma que a morte não tem a última palavra, pois Deus Pai não se esquece de nenhum dos seus filhos. Nesta porta que se abre, nós já não temos absolutamente mais nada a fazer (o falecido está nos braços do Pai, agora pertence totalmente à Misericórdia dele).

Deus que é Pai e Criador é o único capaz de restituir a nossa vida, de recriar a nossa existência, somente Ele pode nos fazer viver novamente, agora numa nova realidade que nenhum de nós conhece ou pode conhecer a não ser pela fé na própria ressurreição de Jesus Cristo. É na ressurreição Dele que encontramos luzes para afirmar que Deus Pai não se esquecerá de nós. (Então é importante perceber que não se trata de um conto de fada, pois a nossa fé têm raízes profundas na Páscoa do Nosso Senhor que naturalmente pertence ao mundo da fé). Desse modo, é possível afirmar com “certeza” confiante que em Jesus sabemos quem somos e sabemos o que acontecerá conosco também após a nossa morte. Eis a nossa fé, eis a nossa esperança.

Alguém poderá perguntar por que devemos rezar, então, pelos nossos falecidos e a resposta é simples. Nós não rezamos pelos nossos mortos para convencer Deus a ser bom com eles. Deus não precisa ser convencido para ser misericordioso, Ele Pai e é Criador. A oração pelos nossos falecidos deve ser uma grande Ação de Graças. “Obrigado Senhor pela Vida, pela memória de fulano”. (Veja que é muito melhor dizer “vida ou memória”, do que dizer “pela alma”). “Obrigado por nos ter permitido o privilégio de conviver, de compartilhar o mundo com fulano”... etc.

É muito mais cristão rezar dando graças a Deus do que pretender dizer a Deus o que Ele deve fazer. A oração tem que nos levar à solidariedade com os familiares do falecido, não como um favor que deve ser feito, mas como uma atitude de alguém que têm “com-paixão” e se coloca silenciosamente ao lado destas pessoas como um irmão ou como uma irmã.

A oração deve nos ajudar a tomar consciência da importância e da beleza da vida e que todos estamos à caminho da irmã morte e por isso devemos procurar viver com gratidão, com alegria e muita esperança confiante Naquele que é capaz de Recriar a vida e “fazer novas todas as coisas”.  

* Fonte das imagens: internet.

sábado, 1 de novembro de 2014

DESAFIOS DA SANTIDADE HOJE

Não faz muito tempo a santidade era compreendida como uma tarefa, algo a ser feito, algo a ser realizado. De modo que quanto mais a pessoa realizava coisas, mais ela era considerada santa. Aqui entra a perigosa ideia do mérito, eu mereço ser santo ou santa porque eu faço tudo direitinho, cumpro os mandamentos, dou esmola, pago o meu dízimo, faço um monte de atividades, sou bom mesmo.

Não faz muito tempo a santidade era considerada como renúncia ao mundo, de modo que se alguém quisesse ser santo ou santa devia escapar do mundo, evitando todas as “suas tentações”. O mundo era visto como a “casa do demônio” do qual o ser humano devia escapar. Nada de política, nada de diversão, nada de prazer; se a pessoa gostava de um churrasco devia renunciar, se gostasse de cafezinho devia renunciar, porque o mundo é fonte de pecado e de maldade, ele é um “vale de lágrimas”.

Não faz muito tempo a santidade era compreendida como uma renúncia a si mesmo, de modo que a pessoa santa devia deixar de ser ela mesma. A pessoa fazia o possível ou o impossível para deixar de ser humano, usava uma roupa pesada e triste, algo que cobrisse tudo, pois até mesmo a forma bonita do corpo poderia ser maldade, utilizava-se a penitência, faziam sofrer o corpo como caminho de perfeição, viviam em constante oração porque Deus gostava muito de ser adorado durante vinte e quatro horas por dia. Algumas pessoas chegaram a mudar até o nome para deixar de ser elas mesmas; outros mudam até a voz porque existe até mesmo um tom adequado de voz que é divina e quanto mais sussurram ou falam de forma chorosa mais se assemelham aos anjos.

Graças a Deus hoje compreendemos a santidade numa perspectiva muito mais ampla; graças a Deus voltamos para a Sagrada Escritura. Recuperamos as alegrias das bem-aventuranças, as alegrias das bodas de Canã, as alegrias do abraço do Pai ao filho pródigo, as alegrias daqueles que são considerados benditos e benditas do Pai porque alguém estava com fome, com sede, nu, doente, na cadeia e foram atendidos nas suas necessidades, alguém era migrante e foi acolhido. Vocês são benditos do meu Pai, venham receber o abraço do Pai porque você fizeram as coisas sem jamais esperar recompensa, tanto que vocês nem sabiam que tinham feitos tudo aquilo, porque foram gratuitos com os seus irmãos.

A santidade hoje deve ser compreendida antes de tudo como a perfeição do Pai, “Sejam perfeitos como meu Pai do Céu”. Muitos ficam assustados com esta proposta, pois entende que é impossível ser perfeito como o Pai; esquecemos, porém, que fomos feitos à “imagem e semelhança dele”. A nossa humanidade é um reflexo do Pai. Ele nos fez humanos, homem, mulher e não nos dotou de nenhuma asa para que não tenhamos a tentação de sermos anjos; não somos anjos, somos humanos porque Deus nos fez assim. Devemos ser perfeitos sendo humanos. Alguns entendem erradamente e buscam imitar os anjos, isso é imitação, a vida real passa pela nossa segunda-feira, pelo dia-a-dia. Muitos pretendem renunciar à sua humanidade para ser perfeito como o Pai, mas a única perfeição possível passa pela nossa humanidade.

Quanto mais humano você for, mais será parecido com o Pai, porque você conhecerá muito bem o seu coração, conhecerá todas as suas qualidades, todos os seus defeitos e procurará melhorar, procurará humanizar-se sempre e o seu coração procurará ser misericordioso com todos e saberá que a perfeição não consiste em algo matemático, mas num caminho que começa com a dureza da segunda-feira e chega até às delícias do encontro do domingo em família, que passa pela vida cotidiana, pelo trabalho, pelos encontros com os outros, pela intimidade diária.

A santidade compreendida como renúncia constante é esquizofrênica porque se trata de uma batalha contra si mesmo, perde-se muita energia procurando vencer tentações e deixa-se de lado a vida diária, deixa-se de lado a humanidade. Pessoas assim podem ser cheias de boas intenções, aparentemente são corretas, não saem da igreja, mas humanamente são falhos porque se colocam elas mesmas como parâmetros de perfeição, todos e todas têm que ser como elas.

A santidade saudável passa por assumir a nossa humanidade e aqui é preciso compreender muito bem para não cairmos em equívocos. A humanidade não significa condescendência como os equívocos, com os erros, com os pecados, com os nossos defeitos. Não significa aceitar tudo em nome da humanidade. Ninguém deveria dizer, por exemplo, que devemos aceitar os seus equívocos, os seus pecados em nome da humanidade, não se trata de uma desculpa. “Sou humano mesmo, então posso me enganar, posso pecar, posso ser limitado”. Não!, aceitar a nossa humanidade é trabalhar para que apareça o melhor de nós, é fazer a nossa parte para que a “imagem e semelhança de Deus” não se apague, não se torne uma marca escura e triste.

Deus quando viu o homem e a mulher gostou muito do que fez. Mas todos nós costumamos esquecer o brilho dessa imagem divina em nós e vamos trilhando caminhos que nos afastam dessa imagem. A desumanização consiste justamente nesta tristeza empobrecedora da nossa humanidade. Fomos feito para a alegria, mas somos tristes, fomos feitos para o amor, mas não temos tempo para ele, fomos feitos para viver com os outros, mas preferimos o isolamento, fomos feitos para a compaixão, mas somos cruéis, fomos feitos para acolher, mas julgamos as pessoas pela sua cor e pior, ainda achamos que a nossa cor seja muito melhor.

A santidade passa pela humanidade, quanto mais humano, mais divino, pois sendo totalmente humano estaremos assumindo a imagem de Deus em nós, o seu espírito que nos dá vida; a santidade autêntica passa pela nossa frágil humanidade. Se Deus quisesse anjos não teria feito o que fez, pessoas, homens e mulheres maravilhosos, generosos, mas ao mesmo tempo mesquinhos e traiçoeiros. Mas foi o que Deus fez e a nossa alegria maior deve ser aprofundar a nossa humanidade e não fugir para refugiar-nos em pseudo espiritualidade que ensina que a santidade é renúncia à humanidade.

O mundo está se desumanizando, os cristãos devem lembrar ao mundo o belo significado de ser humano. Devemos encher o mundo de gestos humanos, porque cada gesto autenticamente humano é um gesto cristão. Não estão em contradição.

Ser santo é acolher Deus em nós, é aceitar que realmente somos imagens e semelhanças, é deixar-se conduzir, é assumir esta beleza que significa ser filho e filha de Deus.

Aceitar o amor gratuito de Deus é a pura santidade.

Ser santo é assumir este amor gratuito na vida, é colocar este maravilhoso óculo de Deus e começar a enxergar o mundo com a visão do amor. E o mundo que é a nossa casa se torna o lugar perfeito para vivermos a nossa vida, então como um segundo passo podemos fazer as coisas. Veja que fazer coisas vem sempre depois. O fazer deve expressar o que somos e vivemos.

O nosso trabalho pastoral é importante, a nossa prática é fundamental, mas não é a pastoral, nem a prática o que nos tornam santos. Eles podem expressar o nosso amor, nada mais do que isso. Isto é importante. Têm pessoas que acredita que são santas porque rezam, têm outras que pensam que são santas porque praticam caridade, têm pessoas que pensam que são santas porque fogem do mundo como se este fosse o capeta. 

A pessoa deve rezar para expressar o imenso amor do Pai, as pessoas devem praticar a caridade porque o amor do Pai as leva a isso, algumas pessoas evitam as maldades do mundo porque sabem que nem tudo convém ao ser humano.

A santidade não é fazer coisas (a prática vem depois como expressão do que vivemos, veja que o que fazemos somente tem sentido se vivemos coerentemente. Se uma pessoa pratica a caridade, dá um prato de comida, paga o seu dízimo, visita santuários, mas é um mal educado, em primeiro lugar deveria ser humano antes de ser santo). A santidade também é fazer coisas, mas como expressão do que se vive. A santidade não é uma renúncia ao mundo, devemos reconhecer que se o mundo não é um bom lugar deve-se também à falta de compromisso cristão.

O mundo é a nossa casa, devemos lutar para que seja um lugar melhor para todos. O cristão não pode fugir do mundo, ao contrário, deve abraçar o mundo, pois ele é a casa comum, lugar onde os filhos dos filhos procurarão viver em paz.

A santidade não é renunciar a si mesmo, é assumir com misericórdia o que somos e procurar que a “Imagem do Criador” em nós não se pague.

Quanto mais humanos, mais divinos. Com certeza, nem você, nem eu ficaremos como uma figura de mármore sobre o altar de uma igreja, mas se a gente procurar a fidelidade ao brilho de Deus em nós, com certeza seremos felizes, pois seremos fieis ao seu sopro divino em nós. Isso é santidade porque desse modo somos agradáveis a Deus. Feliz dia de todos os santos!

* Imagens: Internet.

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

DEUS E O NOSSO TEMPO


A sociedade humana caminha não obstante as suas contradições (uma das mais graves é o progresso e a destruição ambiental). A humanidade cresceu em todos os sentidos, particularmente deu saltos de qualidade na área da técnica (lembremos que nossos avós tinham serias dificuldades de conservação dos alimentos, hoje têm pessoas que congelam a comida para um mês inteiro). Na área da saúde houve avanços extraordinários. É a tal da “evolução humana” que é visível com facilidade. Embora o coração humano continue sendo o mesmo de sempre, com sua generosidade e mesquinharia, suas alegrias e carências. Em poucas palavras, a humanidade caminha olhando para frente, avança devagar, mas avança.

Na área religiosa é natural que haja necessidade de compreendermos Deus também de forma diferente, de um modo maduro e realista.

Deus não tem que se adequar a nós, nem às necessidades que temos, nem ao momento que estamos vivendo. Não é porque hoje não temos mais tempo para nada que Deus deve ser servido como um hambúrguer; não é porque a gente tem um coração duro que Deus deva ser um Juiz; não é porque não conseguimos amar as pessoas que Deus também deve ser visto como Aquele que está mais preocupado com os nossos pecados. (Para muitos, Deus não passa de um Senhor velho com um grande livro nas mãos cuidando para pegar os nossos inúmeros erros e pecados diários).

Deus não tem que se adequar a nós, às nossas expectativas, às nossas necessidades, Ele não pode ser utilizado como um pano quente que pegamos toda vez que precisamos de um consolo. Toda vez que fazemos isso instrumentalizamos Deus, fazemos dele uma ferramenta.

A humanidade vai avançando, nós vamos evoluindo, mas Deus não precisa mudar, se mudasse como esperamos, seria como nós, apenas mais um. O que é e será sempre necessário da nossa parte é compreender Deus melhor. O que precisa mudar é a compreensão que temos de Deus. A nossa compreensão sempre foi, é, e será limitada.

O que sabemos muito bem é que Deus quis vir ao mundo e o fez através do seu Filho Jesus, o Verbo Encarnado. Ficamos sabendo muito sobre Deus, o necessário para que a nossa vida seja melhor, mais humana e mais alegre.

Um dia, conversando com uma pessoa que perdera um ser querido num acidente de carro, ela disse que era incapaz de entender o que tinha acontecido de fato. “Ainda não caiu a ficha”, revelou.

Foi exatamente isso que aconteceu com a Encarnação. A vinda de Jesus, o Deus conosco, resultou ser algo tão extraordinário, tão grande no seu significado, que ficamos sem compreender, “ainda não caiu a ficha”. Nesses dois mil anos de história do cristianismo foi uma luta compreensiva do significado do Deus conosco. Tivemos muitas dificuldades para entender o significado profundo do Deus que se fez homem, que nasceu de uma mulher como todos nós.

Onde está o problema? Em Deus? Não. O problema esteve sempre na compreensão limitada que tivemos deste Deus, embora existissem todos os elementos necessários para compreendê-lo bem.

Os quatro evangelhos possuem informações fundamentais para a compreensão do significado do Deus Encarnado, mas infelizmente em muitos momentos da nossa história os deixamos de lado para dar mais importância ao Direito Canônico (quantos padres da televisão ainda hoje preferem falar de Doutrinas antes de falar do Deus que é Misericórdia, por exemplo). A doutrina de uma religião é muito importante, aliás, nenhuma religião existe sem as doutrinas, mas para a vivência religiosa, para uma espiritualidade sadia dos fieis a doutrina não é suficiente.

Quando estamos com alguma dúvida é preferível procurar luzes nos evangelhos do que na Doutrina. Devemos nos perguntar o que Jesus faria e não o que a Instituição faria, o que a doutrina manda fazer.

Uma vez alguém disse uma verdade que ainda guardo até hoje. Quando uma pessoa na rua pede alguma coisa para comer é porque está com fome. Ela não quer ouvir um discurso bonito sobre a caridade ou sobre a necessidade de trabalhar para conseguir o seu pão. Ela está com fome, precisa com urgência de um pouco de pão. As pessoas que procuram Deus estão com fome e sede de Deus, o que elas querem ouvir é como Deus as ama; como Deus não se esqueceu jamais delas; como Deus continua sendo misericordioso com elas. Elas não estão interessadas em saber o que é que a Igreja diz com relação a um determinado assunto, não desejam saber qual é a doutrina da Igreja com relação a temas polêmicos. Elas procuram um Deus cheio de compaixão que as ajude a enfrentar a vida nos seus dia-a-dia. (A lição de moral, a explicação doutrinária vem depois, bem depois).

Deus não precisa se adequar a nós, nem ao que esperamos que Ele seja. O que precisamos fazer constantemente é interpretar a Encanação a partir das luzes da realidade que vivemos (o que é que as pessoas pensam hoje, quais são as suas necessidades, quais são os seus sonhos, quais são as suas buscas, quais são as suas dificuldades etc.). Para fazermos isso precisamos retornar às fontes primeiras que são os evangelhos e também à nossa rica tradição católica de mais de dois mil anos. (A tradição merece respeito, afinal são dois mil anos de caminhada no mundo, tempo suficiente para saber “mais ou menos” como funciona o coração humano. Por isso que é tão estranho que católicos tradicionais sejam capazes de mudar de religião porque na outra religião encontrou um Deus à sua medida e ao seu gosto).

Precisamos atualizar a nossa compreensão de Deus constantemente. Infelizmente, nesse sentido, a Igreja é lenta demais e hoje sabemos como a mentalidade humana muda com uma velocidade extraordinária (você se lembra quando a gente tinha medo de ir para o inferno? Pois hoje ninguém mais fala disso, ninguém tem medo disso. Os medos mudaram, hoje as pessoas tem pavor das coisas cotidianas como perder o emprego, ficar gordo-a, ser abandonado-a pela-o esposa-o, mas poucos se preocupam com a morte e com o que possa vir depois). É a mentalidade humana mudando constantemente com a sociedade que vai mudando.

Deus não precisa mudar, somos nós que temos que ter coragem de reinterpretar o significado do Deus conosco para que ilumine a nossa vida hoje.

Na história do cristianismo sempre houve mudança de perspectiva, de compreensão, houve até mesmo mudança na Doutrina. Quanto mais a gente compreender melhor o Deus da nossa vida será melhor.

Vejamos rapidamente as grandes mudanças compreensivas de Deus na nossa história. Após a morte de Jesus houve a novidade da Ressurreição. As pessoas eram capazes até mesmo de entregar a vida para testemunhar esta verdade. Ele está vivo! Ele ressuscitou! Neste primeiro momento do cristianismo Deus foi vivido como força do Espírito Santo, a memória recente de Jesus levava as comunidades a viver a espiritualidade como algo cotidiano, vivo, espiritual. O Senhor está vivo, Ele nos dá força e coragem, a nossa vida deve ser igual ao Dele. A característica principal do cristianismo neste período foi a vivacidade do Espírito Santo. Como segundo momento surge a compreensão de Deus não mais de modo espiritual, mas de modo intelectual. O que caracteriza este período é Saber sobre Deus, o estudo sobre Ele (não quer dizer que a primeira característica tenha desaparecido completamente, o que acontece é que Deus é visto como algo a ser Entendido, compreendido através de estudos). E ultimamente procuramos viver Deus como Alguém que se comunica dando ênfase à revelação de Deus através do seu filho Jesus.

Espírito, Intelecto, Comunicação, foram os três modos essenciais de compreensão de Deus. Nas próximas postagens falaremos de cada uma destas etapas e como continuam presentes até os nossos dias.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

DEUS NOS AMOU PRIMEIRO (1 Jo 4,19)


Jesus Cristo é a presença do Pai, por Jesus ficamos sabendo muito de Deus; não tudo, porque Ele continuará sendo um mistério e é muito bom que assim seja, pois nós, seres humanos, temos a tentação de dominar o que conhecemos demais. Sempre que a teologia pretendeu saber tudo de Deus correu o risco de convertê-lo num ídolo. Quanta tristeza num Deus que nem pode se mexer, que nem pode falar, porque nós nos mexemos e falamos por Ele. Mas com frequência falamos apenas por nós mesmos e não em nome Dele. Aquilo que conheço totalmente pode ser dominado com facilidade, pode ser manipulado e convertido num ídolo.

Por Jesus ficamos sabendo, pelo menos parcialmente, de Deus, mas o suficiente para que a nossa vida seja muito melhor. O Concílio Vaticano II afirma que sabemos o suficiente para a nossa salvação, compreendendo “salvação” aqui como uma vida em Deus aqui mesmo no mundo e com a esperança depois, que esse encontro seja pleno (como essa segunda parte ainda é uma esperança somos obrigados a nos concentrar e a nos preocupar no “aqui e agora”, no nosso mundo, na nossa sociedade, na nossa vida, na vida das pessoas, dos pais, dos casais, dos filhos etc.).

O Deus revelado por Jesus é um convite à liberdade; infelizmente a religião organizada apresentou Deus muito mais como um grande Juiz e não como um Pai amoroso. (A própria Igreja nos foi apresentada como uma daquelas madrastas bruxas, das histórias infantis, que fazem sofrer os filhos que não são seus, colocando sobre eles pesos que elas são incapazes de carregar. Graças a Deus o Concílio Vaticano II procurou mudar isso e o conseguiu em parte; ultimamente o Papa Francisco está se esforçando para mostrar-nos que a Igreja deve ser uma mãe e não uma madrasta).

Existem, infelizmente, muitos religiosos exaltados falando em nome de Deus e que não falam de outras coisas senão da sexualidade, “que sexo é pecado”, “que isto ou aquilo”, dando um peso exagerado a tais questões. Quando alguém tem fixação por estes temas deveria procurar ajuda psicológica com toda tranquilidade. Estas pessoas pensam que o único pecado importante para Deus tem a ver com questões sexuais. É verdade que uma vida desordenada neste âmbito leva quase sempre à solidão e à tristeza. Aliás, toda desordem na vida tem os mesmos efeitos, todas as dependências levam à tristeza, seja do álcool, do sexo, das drogas, das pessoas, dos ídolos etc.

A religião autêntica deve ser caminho de liberdade e não de dependência. Não existe nada mais triste do que a dependência. “Eu amo você porque dependo de você”, isso não é amor, é dependência. “Deus, vou rezar porque senão fico triste”, isso não é oração é refúgio. “Vou dar um prato de alimento a alguém, porque assim poderei ir para o céu”, isso não é caridade, é interesse. “Nossa Senhora, vou fazer uma promessa, caminharei até o seu santuário se passar de ano na escola”, isso não é confiança, mas espírito comercial.

A religião autêntica é um caminho de libertação (uso esta palavra com temor, pois muitos não podem ouvir esta palavra porque a associam com a Teologia da Libertação, que foi demonizada por pessoas que jamais a conheceram). Utilizo esta palavra recorrendo ao Evangelho de São João, “Se vocês guardarem a minha palavra, vocês de fato serão meus discípulos; conhecerão a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8, 31-32). Jesus é o rosto libertador de Deus Pai, aquele que veio para que a nossa vida seja mais, para que seja uma vida abundante.

Existem muitas passagem bíblicas que nos ajudam a perceber esta proposta de Jesus; por exemplo as bodas de Caná, narrada apenas por São João, nos outros evangelhos não existe esta festa. Ela ilustra muito bem como deve ser compreendida a “vida em abundância”, uma vida alegre, confiante, bem humorada, comprometida, responsável, mas também com uma mesa cheia entre familiares e amigos, com bom vinho, com uma comida boa; não é isso que fazemos aos domingos quando compartilhamos, na casa da mãe, aquela comida gostosa?, e tem cerveja, e tem vinho, e tem frango e carne, feijão e até sobremesa?

Então alguém poderá dizer, “mas isso nem todos têm”; é verdade, mas todos deveriam ter, se não têm será por que alguma coisa está errada. Injustiça, corrupção, pobreza, etc. O que sei é que o mundo tem o suficiente para que em cada mesa haja a alegria da abundância e da festa.

Uma preciosidade, com relação a esta queixa, podemos encontrar na passagem do Evangelho de São João, quando Judas protesta ao ver a mulher derramar um frasco inteiro de perfume nos pés de Jesus. Judas disse que poderiam vender esse perfume para ajudar muitos pobres. Então o comentarista afirma que Judas não estava preocupado com os pobres, pois ele era o encarregado pela bolsa do dinheiro e era um ladrão. (Cf. Jo 12, 3-6). O que importava naquele momento não era o caro perfume, nem os pobres, mas um gesto de amor, de gratidão, de alguém que estava perdida e que fora recuperada. Ela encontrou uma forma de agradecer “desperdiçando” um perfume muito caro. Um gesto de amor nunca pode ser um desperdício.

Uma avó recebe os seus netos um sábado à tarde para verem desenho animado na casa dela. Os netos pedem pipoca e guaraná para ela. Vocês acham que a avó, que vai à cozinha preparar a pipoca, ficará contabilizando ou pensando, “não posso gastar todo o saco de pipoca, pois semana que vem vão querer mais”? A avó não está interessada na semana que vem, o que ela quer é ver os seus netos felizes comendo pipoca e bebendo guaraná até não quererem mais. A abundância da pipoca é sinal de uma vida abundante, a abundância é sinal do Reino dos Céus. Deus Pai é como essa avó, foi o que Jesus veio nos revelar com as suas palavras, atitudes e gestos.

O caminho da libertação é um longo processo e o mais importante não é ficar pensando na chegada, mas estar atento ao caminho que se está fazendo no dia-a-dia.

Optar por Deus é a possibilidade mais bonita na nossa relação com Deus. São João afirma que Ele nos amou por primeiro. Isto é fantástico, maravilhoso, saber que Deus Pai nos amou desde sempre.

O exemplo disso pode ser a imagem da mãe que aguarda o nascimento do seu filho. A minha irmã número 3, (tenho 4), está esperando o seu segundo filho; ela e o seu marido estão correndo para deixar tudo prontinho para a chegada dessa criança. A minha sobrinha está feliz porque terá um irmãozinho; a minha irmã me manda periodicamente notícias sobre o seu estado, tira foto da barrigona e, dessa forma, me torna partícipe da sua alegria. Esta criança pode ter certeza que é aguardada com muito amor pelos seus pais, pela sua irmãzinha e por todos os familiares e amigos.

Deus é assim conosco, nos amou desde sempre e, com certeza o que deseja para cada um de nós é: “muita pipoca e guaraná durante a vida inteira”. Claro, o sonho que Deus tem para cada um e cada uma é que a nossa vida seja uma vida abundante.

Somente pode optar quem é livre, saber que somos amados não nos condiciona a dizer Sim. (Quantos namorados e namoradas tentaram oferecer os seus amores aos seus pretendentes e receberam “não” como resposta; o amor que sentimos não garante que também, o outro ou a outra, sinta o mesmo que sentimos).

Escolher Deus na nossa vida deve ser expressão da nossa liberdade. Optar por Deus é poder dizer “eu também amo você e desejo caminhar ao seu lado”. É o nosso sim a Deus, é a nossa resposta. É o sinal da nossa fé. É o início de um caminho juntos, você e Deus. Um caminho que nasceu de um amor ofertado primeiramente por Deus, “Ele nos amou primeiro”, que agora se completa com o nosso Sim.

Eis a fé como nossa resposta, da parte que nos cabe, a nossa atitude concreta que nos abre um caminho novo; um caminho que fazemos na confiança total nesse Deus que nos amou por primeiro.

* A primeira imagem é do artista Sergio Ricciuto.
* A segunda imagem é a minha irmã esperando o Dante.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

A FÉ CONFIANTE

Era um sabiá, fiquei sabendo depois, pois sou incapaz de reconhecer as espécies das aves. O pássaro veio até a janela. Não fiz nenhum movimento brusco para não assustá-lo, mas ele se assustou e voou para dentro do quarto arremetendo contra o vidro com todas as suas forças, com certeza o animalzinho por instinto esperava que aquele material transparente fosse a sua saída, a sua libertação.

Bichinho que não pensa continuou na sua tentativa, porém cada vez com menos força. Levantei bem devagar, pois não queria interferir naquela luta titânica pela sobrevivência. Quando caiu aos meus pés, tomei-o com cuidado e, sem saber o que fazer, ofereci-lhe um pouco de água. Não sei se estava com sede, mas o meu instinto me levou a oferecer-lhe o líquido vital; molhei a sua cabecinha com umas gotas de água.

Coloquei-o na janela para que pudesse voar quando quisesse ou pudesse. Ele não esperou muito. Voou, mas imediatamente pousou num lugar mais seguro, ficou ali na sombra um pouco atordoado após uma experiência que para ele terá sido terrível.

Não gosto de animais domesticados, nem de gato, nem de cachorros, mas admiro as pessoas que os têm e se esmeram por lhes oferecer conforto. Eu os prefiro livres, pássaros na gaiola então para mim é insuportável. Creio que muitas vezes os instrumentalizamos para que a nossa vida não seja tão solitária. Mas essa é outra história.

A inesperada visita do pássaro me fez pensar e me fez decidir escrever esta semana sobre o sentido da nossa fé.

Aquela vida quente em minhas mãos me fez pensar sobre a grandeza e a miséria da nossa vida. A grandeza porque com certeza é um milagre, a vida só pode ser um milagre, por isso desconfio muito daqueles que dizem que ela seja fruto de um acaso. Mas cada um tem o direito de acreditar como quiser ou como lhe fizeram crer. A vida para mim é o mais sagrado que possa existir, é o terreno comum onde todos nos encontramos, onde podemos nos entender com respeito, pois o resto é discutível. A cor da pele, a cor dos olhos, a medida do calçado, o modo de se pentear, o deus ou deuses em que você acredita, as suas preferências políticas, o time ao qual você torce; tudo é discutível. Mas a vida não pode ser discutida, pois ela é sagrada. Entendo pela palavra “sagrada” o que não pode ser banalizado. A vida humana é única, por isso toda forma de violência contra ela sempre será um crime.

Por que é tão aberrante a violência contra as crianças? Porque trata-se de uma vida indefesa.

Os quatro evangelistas estão de acordo em que Jesus gostava muito das crianças e que, em várias ocasiões, as colocou como símbolo do Reino de Deus. Os professores, porém, sabem muito bem que as crianças não são boazinhas pelo mero fato de serem crianças, elas são capazes de atos inesperados, e com frequência costumam ser bastante cruéis com os seus coleguinhas. Jesus não as colocou como símbolo porque sejam inocentes ou boazinhas.

Os pequeninos são exemplo do Reino porque estão completamente nas mãos dos adultos. Todos sabemos que é muito fácil de enganar uma criança, os pais são especialistas em inventar caminhos engenhosos para convencer seus filhos a fazerem o que lhes parece corretos.

O que resulta aberrante é quando esses adultos, que deveriam cuidar, proteger, se aproveitam da fragilidade dos pequenos. É aberrante que um adulto trate uma criança como se ela fosse uma pessoa adulta.

As crianças confiam plenamente nos adultos, confiam nos seus pais, nos seus irmãos mais velhos, confiam nos professores, nas catequistas, nos médicos, nos enfermeiros, confiam nos seus tios e tias, confiam nos vizinhos. A princípio, para elas, os adultos representam um porto seguro.

Eis a bela imagem que Jesus propõe, se vocês não tem essa confiança das crianças em Deus, nosso Pai, dificilmente entenderão a dinâmica do reino de Deus.

A fé madura em Deus é a confiança das crianças nele, ou seja, a certeza que Ele é o adulto em quem se pode confiar, com a diferença radical de que não estamos mais diante de um adulto que pode ser um grande egoísta, mas diante de um adulto que é um amoroso Pai.

A fé confiante em Deus significa ter certeza de que estamos nas mãos Dele. Esta deve ser uma certeza de sentido, isto é, o que nos dá alegria de viver, saber que todos os dias somos carregados pelo amor do Pai. Esta certeza deve nos ajudar a sair para a vida com alegria e com confiança.

O desafio para o homem e mulher de fé madura é testemunhar no pequeno espaço de todos os dias este amor. Este amor que deve ser concreto no rosto da esposa, do esposo, dos filhos, dos pais, dos jovens, dos adultos, dos idosos. Este amor que deve ser real com os vizinhos, com os colegas de trabalho, com as pessoas nas ruas. O amor não pode ser apenas uma boa intenção.

Devemos procurar viver a nossa fé diariamente com a limitação que cada um têm: um trabalho chato, uns vizinhos barulhentos e mal educados, uns pais que não são como imaginamos, uma comunidade fofoqueira e pouca acolhedora, pessoas que dizem ter fé, mas confiam muito mais nas suas próprias forças.

A fé confiante deve ser real e não apenas uma poesia que faz estremecer o nosso coração, por isso a fé passa pelo nosso “bom dia”, pelo nosso “me desculpe”, pelo nosso bom humor, pelo nosso aprender a rir de nós mesmos, dos nossos defeitos. (Costumo repetir que quando a gente consegue rir dos nossos próprios defeitos, com certeza vamos nos divertir bastante).

A fé com espírito de criança, ao contrário de ser uma fé ingênua, é uma fé madura. A fé ingênua, infantil é aquela que dá mais importância aos enfeites da religião do que ao essencial dela. (Em uma ocasião uma senhora ficou magoada comigo depois de me ouvir dizer que preferia Nossa Senhora como Mãe que como Rainha. As rainhas humanas são, com frequência, déspotas, mas a maioria absoluta das mães que conheço me fala da doçura do rosto maternal do próprio Deus).  Para a minha fé, que Maria seja rainha ou não, não é importante, pois considero isso apenas como um “enfeite” da religião. Amo Maria porque me aproxima do seu filho Jesus, amo Jesus porque me mostrou o coração de Deus, o coração do Pai.  Isto para mim é essencial da fé madura que tem a característica do rosto da criança, confiante, alegre, bem humorado e, sobretudo que é capaz de ser feliz com pouca coisa.

Vivemos um tempo de muito barulho, de muitas imagens, de muitas palavras soltas, a fé também precisa se recolher como uma criança confiante nos braços da mãe. A fé cresce, amadurece, sempre mais quando se torna livre para voar como o pássaro que tem o céu como a sua casa. A fé é livre quando é capaz de assegurar o que é essencial. O amor ao próximo, a compaixão, a busca pela justiça e pela verdade, com certeza, são essenciais para todos os cristãos que procuram viver a fé confiante no seu dia-a-dia.

* Imagens ilustrativas da internet.